|
Pensar o sintoma a partir de sua articulação à função fálica: uma contribuição para a
discussão do diagnóstico em psicanálise
1. Introduzindo a questão: as querelas em torno do diagnóstico em psicanálises
Nas últimas décadas, muitos autores vêm se dedicando a discutir diferentes formas de organizar uma psicopatologia própria à diagnóstica psicanalítica. Parece que, como nos aponta de maneira muito precisa Christian Dunker (2015), na medida em que os quadros clínicos descritos por Freud foram se tornando mais raros na clínica cotidiana, teve início, ao longo dos anos 1990-2010, um processo de inúmeras tentativas de redescrever as estruturas clássicas freudianas e a psicopatologia lacaniana.
Muitos autores passaram a observar, por exemplo, que, no lugar das histerias clássicas, encontramos agora depressões e síndromes de pânico. Proliferaram-se os quadros de dependência de drogas. Passou-se a falar muito frequentemente em pacientes borderline e em
estados-limite.
No que diz respeito às teorizações de orientação lacaniana, observa-se que diferentes períodos da obra de Lacan têm sido confrontados. Alguns autores já se perguntaram se existiria uma ou várias clínicas, como o fez Soler (1999); outros propuseram novas denominações, como é o caso de Miller (2012), que cunhou o termo psicose ordinária para se referir a casos de psicoses discretas, em que não se verificava a presença de fenômenos elementares claros; outros autores, ainda, realizaram esforços no sentido de revisitar a diagnóstica da psiquiatria clássica, como é o caso de Quinet (2006), que retoma minuciosamente os três tipos clínicos da psicose – esquizofrenia, paranoia e melancolia.Aparte esse panorama de produções acadêmicas sobre o diagnóstico, observa-se que,na prática clínica em instituições de saúde mental – particularmente nas ocasiões em que os psicanalistas da instituição se reúnem para construir um caso clínico sob supervisão –,circulam ali diferentes opiniões acerca da importância do diagnóstico estrutural para a definição de uma direção de tratamento. Mesmo entre psicanalistas de uma mesma orientação teórica, portanto, existem querelas, discordâncias acerca da função do diagnóstico estrutural.Há quem defenda, por exemplo, que o diagnóstico da estrutura não importa, uma vez que a psicanálise só se interessa pelo singular e que um diagnóstico envolve necessariamente a inserção de um indivíduo em uma categoria universal, o que produz consequentemente uma série de efeitos de mortificação sobre esse sujeito. Aqueles que pensam nessa perspectiva acreditam que, no ponto em que se situam as teorizações da psicanálise de orientação
lacaniana atualmente, priorizando cada vez mais os modos de gozo e as saídas e invenções
singulares de cada um, de nada serviriam ao psicanalista termos como neurótico, psicótico e
perverso.
Outros psicanalistas acreditam que a clínica estrutural ainda pode servir como baliza para os casos clássicos, mas que, para os casos limites, seria melhor utilizar como ferramenta clínica a topologia borromeana, desenvolvida por Lacan a partir da década de 1970. Apenas as amarrações borromeanas, mais plásticas, poderiam dar conta de elucidar alguns casos.A despeito dessas tendências, de tempos em tempos, deparamo-nos com alguma publicação que nos leva a pensar que o diagnóstico estrutural ainda tem seu lugar na clínica psicanalítica. Em "Discurso do método psicanalítico" (1987/1997), por exemplo, Miller reflete sobre a importância da avaliação clínica, que corresponderia ao momento de se fazer um diagnóstico estrutural, com a finalidade clara de obter um efeito de direção no tratamento. Desde a Conversação de Arcachon, o grupo influenciado pelo pensamento de Miller vem discutindo a questão do diagnóstico. A discussão aí iniciada parece ter atingido maior grau de elaboração e maturidade na Convenção de Antibes, quando Miller propôs a psicose ordinária como categoria de investigação diagnóstica e, inclusive, afirmou ser necessário ir ao encontro da clínica psiquiátrica clássica toda vez que nos depararmos com um caso que considerarmos uma psicose ordinária, dizendo se apostamos que se trata de uma paranoia, de uma melancolia ou de uma esquizofrenia. Em Efeito de retorno sobre a psicose ordinária (2012), ele é claro:Uma vez que disseram que é uma psicose ordinária, tentem classificá-la de uma maneira psiquiátrica. Não digam simplesmente que é uma psicose ordinária; devem ir mais longe e reencontrar a clínica psiquiátrica e psicanalítica clássica. Se não fizerem isso – este é o perigo do conceito de psicose ordinária – é o que se chama um "asilo da ignorância" . Ele se torna então um refúgio para não saber. Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos? (MILLER, 2012, p. 412). Em suma: enquanto alguns propõem abandonar a preocupação com a estrutura ou mesmo com qualquer tipo de classificação em prol de uma clínica que busca rastrear os modos singulares de gozo ou de satisfação pulsional, outros retomam a discussão sobre a necessidade não só da classificação estrutural, mas aconselham um esforço mais específico de classificação, que seria a determinação do tipo clínico dentro da estrutura.A multiplicidade de discursos – nem sempre harmoniosos e muitas vezes até contraditórios – sobre o estatuto atual do diagnóstico em psicanálise mostra que a questão merece ser estudada com minúcia.
De fato, vê-se que o diagnóstico é um problema para o psicanalista, uma vez que ele é, em sua essência, contraditório com a análise. Por um lado, o diagnóstico parece nos interessar porque, dentre outras coisas, facilita a comunicação e a transmissão de ideias entre os pares,
confere ao analista certo poder de antecipação e certa possibilidade de cálculo para a elaboração de uma estratégia de condução para o tratamento. Por outro lado, no entanto, não é possível insistir ou confiar muito nessas vias que apontam para a utilidade do diagnóstico, sob o risco de perdermos de vista a dimensão da singularidade visada pela psicanálise. Dessa
forma, para o psicanalista, o diagnóstico configura-se, ao mesmo tempo, como um mal necessário e como um bem perigoso, isto é, como algo que deve ser buscado, mas jamais alcançado inteiramente, verdadeira solução de compromisso. Fiar-se apenas nas generalizações possíveis para cada classe de um sistema de classificação não dá conta do fenômeno, sobretudo quando se trata do diagnóstico em psicanálise. Qualquer categoria possui sempre algo de artificioso, de puro semblant, como já nos mostrou Miller, no texto A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan: "Toda prática diagnóstica tem como inerente a ideia de que o indivíduo é um exemplar de uma classe"(MILLER, 2003, p. 30). Acontece que um indivíduo nunca é um exemplar perfeito. O enquadramento dentro da classe não garante que o sujeito seguirá determinados padrões de funcionamento. Trata-se de uma garantia apenas pragmática, o que precisa ser levado em conta a todo momento por um analista:O universal da classe, seja ela qual for, nunca está completamente presente num indivíduo. Como indivíduo real, pode ser exemplar de uma classe, mas é sempre um exemplar com uma lacuna. Há um déficit da instância da classe num indivíduo e é justamente por causa desse traço que o indivíduo pode ser sujeito, por nunca poder ser exemplar perfeito. (MILLER, 2003, p. 31).Do ponto de vista da psicanálise, há sujeito toda vez que ele, justamente, afasta-se do universal (e, assim, também poderíamos ler: da estrutura). O sujeito é, portanto, efeito de um deslocamento, de uma disjunção da espécie. Nesse sentido, o diagnóstico em psicanálise aproxima-se mais de uma arte do que de uma ciência: julga-se um caso sem regra e sem classe pré-estabelecida. Ao invés de aplicar uma regra, decidir se uma regra se aplica.
2. Como, então, operar clinicamente com a noção de estrutura?
Como vimos, para a psicanálise, a questão do diagnóstico estrutural é delicada. Diante disso, pode-se perguntar: como seria possível trabalhar com operadores da clínica estrutural sem cair na rigidez do binarismo entre neurose e psicose e sem desconsiderar a singularidade de cada caso?Uma maneira de fazer um uso clínico interessante da noção de estrutura é partindo da compreensão de que o estruturalismo de Lacan comporta em seu cerne o lugar da exceção. O filósofo Gilles Deleuze (2006) fala da existência de um impasse para a corrente estruturalista com relação ao elemento paradoxal da estrutura: o fato de que ela sempre se organiza em torno de uma " casa vazia" ou de um "grau zero" . Segundo Deleuze, apenas Lacan, dentre todos os estruturalistas, conseguiu dar um tratamento minucioso a esse elemento de exceção.
O sujeito da psicanálise lacaniana extrapola o Outro dos estruturalistas. Se, para os demais estruturalistas, a estrutura é um conjunto formal completo, para Lacan, esse conjunto é marcado por uma falta. A falta no campo do Outro (isto é, a "casa vazia" no conjunto da estrutura) é justamente o que inaugura o sujeito como ser desejante. Assim, é possível afirmar que o diagnóstico estrutural é compatível com a clínica psicanalítica contemporânea na medida em que se utiliza uma acepção específica do conceito de estrutura: a maneira como o termo foi apropriado do estruturalismo por Lacan. Se, para Lévi-Strauss, não haveria sujeito possível no campo da estrutura, para Lacan, a estrutura é justamente o significante que "põe em cena o sujeito" (LACAN, 1998, p. 655). Conforme observa Gilson Iannini (2011), não existe uma antinomia fundamental entre o sujeito e a estrutura. Em Lacan, os termos "sujeito" e "estrutura" convivem lado a lado; a estrutura não exclui o sujeito. Nesse sentido, a estrutura não seria apenas o nome que se dá aos critérios diagnósticos que a psicanálise herdou da psiquiatria – as categorias neurose, psicose e perversão –, como se poderia apreender numa aproximação superficial ao tema. A estrutura tem efeitos no real; ela é o modo como o significante mostra quem é o sujeito e, dessa forma, comporta seus modos singulares de gozo
.
3. Um exercício: pensar o sintoma a partir de sua articulação ao falo
A construção do caso clínico que se segue pode ser compreendida como um exercício em que se experimenta uma maneira específica de utilizar a vertente estrutural da diagnóstica acaniana. Pensar o diagnóstico seria, aqui, tentar localizar como a satisfação pulsional se articula ao significante que põe em cena o sujeito.O caso clínico que será construído aqui é fruto de atendimentos de caráter ambulatorial que se deram no contexto de um estágio supervisionado − parte da grade curricular do curso de graduação em Psicologia da UFMG −, coordenado pelo professor Antônio Teixeira. Os atendimentos são realizados semanalmente no Ambulatório Bias Fortes, anexo do Hospital das Clínicas da UFMG, e seguem orientação psicanalítica. Nas construções de casos clínicos que realizamos no Ambulatório, temos exercitado com frequência um tipo específico de raciocínio clínico, a saber: temos tentado identificar qualitativamente a presença ou não da função fálica na organização da solução sintomática de um sujeito. É como se nos perguntássemos, em cada caso analisado, se a solução sintomal de um sujeito abriga ou não uma contradição, se há ou não ali uma dialetização possível na posição subjetiva que o sujeito ocupa. Acredita-se que esse modo de pensar a clínica pode iluminar a questão do diagnóstico em psicanálise porque foge do binarismo rígido entre psicose e neurose sem, no entanto, abrir mão de operadores lógicos caros ao estruturalismo. Mais adiante, retomarei os pressupostos teóricos que sustentam e justificam tal metodologia de trabalho.No caso clínico que será apresentado a seguir, veremos que, se tomada na perspectiva da clínica fenomenológica ou da clínica de transtornos do DSM (Diagnóstico Estatístico de Transtorno Mentais), a sintomatologia da paciente poderia sugerir que se está diante de um caso de psicose. No entanto, uma leitura psicanalítica mais fina, que busque perceber a presença de contradições na solução sintomal do sujeito, poderia apontar para uma neurose.Inicialmente, descreverei o caso e, posteriormente, passarei à análise e à discussão teórica com relação à articulação do sintoma à função fálica.
3.1 O Caso Vanessa: uma ovelha negra às avessas
A paciente Vanessa1, de 48 anos, chega ao Ambulatório em agosto de 2014, por indicação da psicóloga que a acompanhava em um serviço da Prefeitura de Belo Horizonte.Ao me transmitir informações sobre o caso, a psicóloga conta que a paciente tem o costume de consultar profissionais de diferentes especialidades da área da saúde, como nutricionistas,psicólogos, homeopatas, fonoaudiólogos. Está sempre procurando descobrir a causa dos vários sintomas que acometem seu corpo. Atendi Vanessa poucas vezes, pois a paciente não aderiu completamente aos atendimentos ambulatoriais. Comparecia ao Ambulatório sempre sozinha, apresentando-se bem cuidada e bem vestida. Embora seu discurso seja organizado, produz no interlocutor certa 1 O nome é fictício e algumas informações pessoais foram alteradas, de forma a preservar a identidade da paciente.confusão, no sentido de ser pouco preciso e pouco esclarecedor. Ao longo dos atendimentos,por vezes precisei pedir a Vanessa que fosse mais específica ou que me explicasse melhor o desfecho de alguma história que contava.Inicialmente, Vanessa apresentou-se como sendo esteticista. Contou que já trabalhou
em salões de beleza, mas que, atualmente, vinha atendendo poucos clientes em casa. Além disso, na época dos primeiros atendimentos, ela fazia um curso técnico de Administração em Alimentação Escolar, durante o dia. Mais tarde, Vanessa viria a me contar que já havia trabalhado com culinária e com artesanato. Divorciada há 27 anos, é mãe de cinco filhos, frutos do primeiro casamento. Vanessa conta que casou grávida, aos 16 anos, com um homem de quem nunca gostou e que a agredia fisicamente. A união durou apenas cinco anos (dos 16 aos 21 anos de Vanessa). Depois do divórcio, Vanessa teve alguns relacionamentos duradouros. Ela parece gostar de ressaltar certo status dos parceiros que já teve: "Já namorei muitos advogados, arquitetos, gerentes, médicos". Ultimamente, relata que não tem se relacionado com ninguém.Vanessa mora em uma casa que foi deixada de herança para a família pelo pai. Por esse motivo, de tempos em tempos, a mãe de Vanessa, com quem a paciente tem um relacionamento difícil, passa temporadas na casa onde ela mora com os dois filhos. A posse desse imóvel é motivo de constantes desavenças entre Vanessa, sua mãe e suas irmãs, uma vez que, na compreensão de Vanessa, o pai teria deixado a casa para ela, mas, ao que tudo indica, suas irmãs e sua mãe também reivindicam direitos sobre o imóvel. No momento da escrita deste artigo, inclusive, Vanessa havia acabado de se mudar para outro apartamento, em razão de ter sido expulsa de casa pela mãe: "Essa foi mais uma das sacanagens que minha mãe fez comigo. Me botou pra fora de casa depois de eu ter contribuído com todos os gastos da reforma". Como veremos adiante, ter a mãe por perto é um fator que desorganiza Vanessa. O pai de Vanessa morreu quando ela tinha apenas oito meses de idade, em um acidente de moto. Segundo ela, o pai se acidentara logo após ter tido uma discussão calorosa
com a mãe porque esta descobrira que o marido mantinha um caso extraconjugal. O único momento em que Vanessa parece colocar algum afeto no discurso é ao falar da morte do pai. A mãe, nas palavras dela, "nunca gostou de mim". Vanessa fala de uma preferência clara da mãe pelas outras irmãs. A paciente conta que cresceu sendo deixada na casa de vizinhos e tias, "até que um dia minha avó me resgatou e me levou para morar com ela". Vanessa morou
com a avó dos nove aos dezesseis anos, quando engravidou e se casou. Vanessa narra, de maneira confusa, um episódio ocorrido quando sua mãe estava grávida dela em que uma espécie de médium haveria dito à sua mãe que aquele bebê que ela esperava nasceria com cara de cachorro. "Deve ser por isso que ela nunca gostou de mim. Quando eu nasci, dizem que minha mãe demorou a conseguir olhar pra minha cara, porque tinha medo que eu tivesse cara de cachorro". (Segundo Vanessa, sua mãe, que é espírita, é cheia de superstições e tem o
costume de frequentar reuniões religiosas e realizar rituais de magia em casa). Em atendimentos posteriores, Vanessa me confessou que acreditava que ela era uma exceção em sua casa, e explica: " Eu sou a única que não sou vagabunda". Pergunto-lhe o que ela queria dizer com vagabunda, e ela me responde que "vagabunda é mulher que não trabalha, que explora os outros. Na minha casa, eu sou a única que trabalha direito. Minha mãe e minhas irmãs são vagabundas". Sobre a infância, a única lembrança que Vanessa traz é com relação à rigidez da mãe. Ela se refere às reuniões da família como sendo um quartel: "Só podíamos comer o que minha mãe mandasse".
Vanessa chega à primeira consulta com a seguinte queixa: "Quero descobrir o que está acontecendo comigo, quero saber o quê que eu tenho" . Queixa-se, ainda, do peso significativo
que perdera nos últimos sete meses e que, segundo ela, apenas recentemente conseguira começar a recuperar. Atribui a perda de peso, que ela nomeia anorexia, à falta de apetite e conta que, nos últimos meses, tem comido por dia apenas uma fatia de pão integral, café e água. Relaciona a recente recuperação de alguns quilos ao uso de florais e medicamentos homeopáticos, que abrem seu apetite. Na primeira consulta, Vanessa me disse que estaria pesando 45 kg (apenas três quilos abaixo de seu peso antes do episódio de emagrecimento). No entanto, quando peço para que ela suba na balança, o peso indicado é 49 kg. A paciente conta de uma internação − a única de sua vida − em um hospital psiquiátrico, onde permaneceu por dois meses, durante o ano de 2010. Segundo ela, a internação se dera em razão de uma "crise de nervoso". Inicialmente, Vanessa explica que o acontecimento que precipitara a internação havia sido o rompimento com o namorado, em razão de este ter gastado todo o dinheiro de seu cartão de crédito. "Emprestava o cartão para ele e, um dia, descobri que estava endividada" . No entanto, em seguida, Vanessa acrescenta que o que a deixara mais nervosa havia sido o fato de a mãe do namorado, sua sogra, ter insinuado que ela teria amantes: " Ela saía falando mal de mim para as pessoas. Um dia, ela inventou que eu estava dentro de um carro com outro homem, na porta de casa. Falava que eu tinha casos com outros homens". Nesse dia, Vanessa jogou seu celular contra a parede e sentiu uma dor no peito. "Minhas mãos e meus pés entortaram, meu peito ficou inchado e eu achei que estava tendo um infarto, mas o médico que me atendeu na urgência disse que era um ataque de nervos". Saindo do pronto-atendimento, a caminho de casa, ela teria ficado com o corpo "amolecido" e, então, decidiram interná-la no hospital psiquiátrico.
Vanessa passou dois meses internada e, quando voltou para casa, ficou por mais de um ano em um estado que chamou de grave depressão: "Eu ficava o dia inteiro deitada no quarto escuro, pensando em morrer. Só saía do quarto quando meus filhos caçulas iam para a escola
porque eu não queria ver ninguém, nem conversar com ninguém". Segundo Vanessa, datam dessa época suas tentativas de autoextermínio, todas realizadas a partir da ingestão excessiva
de medicamentos.
Vanessa relata que escuta vozes desde os seus 12 anos de idade. Segundo ela, não são vozes que a incomodam ou que possuem qualquer conteúdo persecutório. "São vozes de parentes que normalmente chamam meu nome". Depois, revelou-me que, na verdade, as vozes só apareciam quando a mãe estava por perto. Relatou também já ter visto "vultos e
almas de pessoas que já haviam morrido".
Os primeiros atendimentos com Vanessa foram difíceis. A paciente retornava a cada consulta mais indignada porque suas "crises" não cessavam. Falava apenas dos sintomas corporais que a acometiam e muito pouco de suas impressões sobre a vida. Suas "crises" envolviam os seguintes sintomas: dores de cabeça fortíssimas, dores de estômago, náusea, ânsia de vômito, falta de apetite, dor nos ossos da face e, principalmente, insônia. Em algumas
consultas, Vanessa chegava dizendo que não dormia há mais de 15 dias e que continuava passando os dias apenas à base de café, água e uma fatia de pão integral, isso quando ela não vomitava o que havia ingerido. Entretanto, a despeito desses relatos, não noto nenhum emagrecimento aparente. Os exames médicos que avaliamos não apontaram nenhuma alteração orgânica significativa. Em razão da queixa insistente sobre a insônia, que persistia apesar da medicação benzodiazepínica que a paciente sempre tomara, Vanessa foi inicialmente medicada com um antidepressivo. Como isso em nada a ajudara a dormir, aumentamos posteriormente a dose. Sem sucesso. É possível que a paciente nunca tenha de fato chegado a usar a medicação, uma vez que ela já havia me relatado em consultas anteriores que normalmente não se dava bem com os remédios receitados por médicos:
"Nenhum remédio resolve meus sintomas".
Os atendimentos se encontravam nesse ponto quando Vanessa parou de vir às consultas e ficou mais de dois meses sem vir ao Ambulatório. Soube pela psicóloga da prefeitura que ela estava trabalhando em uma cidade do interior de Minas Gerais. Em meados de novembro, Vanessa retorna para uma consulta e chega dizendo que está ótima. Conta que esteve por cerca de um mês no interior dando consultorias, cursos de formação para artesãos e trabalhando em uma feira de produtores que acontece aos domingos.Vanessa me explica que essa feira, que se tornara um acontecimento tradicional na cidade,
fora criada por ela há muitos anos, quando ela residira na cidade: "Virou uma atração turística tradicional. Fui eu que tive a ideia de servir quitutes e cafezinho na rua, fui eu que dei aulas para os artesãos, que dei cursos de formação" . Disse que é muito conhecida pelos artesãos da
cidade, mas que, infelizmente, a autoria da ideia da feira não foi creditada a ela, pois uma mulher que fora sua sócia na época teria levado a fama. "Mas eu não ligo pra isso, não, sei que fui eu que criei tudo lá".
Contou-me, então, que, durante a temporada fora de Belo Horizonte, esteve muito bem: sono normal, apetite e alimentação normais; as dores de cabeça, dores no estômago e desmaios haviam cessado. "E isso tudo sem nenhuma medicação. Nem remédio para dormir eu estava tomando". Pergunto-lhe se ela sabe qual teria sido o motivo de sua melhora repentina, ao que ela me responde: "Acredito que foi porque fiquei distante da minha mãe e das minhas irmãs, elas não me fazem bem" . Em seguida, revela que teve uma crise, a qual teria sido diferente de todas as anteriores, cerca de uma semana depois que regressara do interior: "Não foi coisa desse mundo, foi coisa do capeta mesmo. Eu estava voltando pra casa e, quando virei a esquina, fiquei bamba e mole, como se eu tivesse de porre, mas eu não tinha bebido nem uma gota de álcool. Foi como se eu tivesse ficado bêbada de uma hora pra outra.Comecei a trocar as pernas, embolar uma pena na outra e a tropeçar. Fiz um esforço parachegar em casa. Enquanto subia as escadas, comecei a sentir chicoteadas nos meus braços e pernas. Minhas pernas foram ficando cheias de marcas de chicote, de vara, eu via os vergões aparecendo do nada. E meu corpo era jogado de um lado pro outro, de uma parede para outra. Eu sabia que era coisa sobrenatural e acho que é culpa da minha mãe e das minhas irmãs". Ela me explica que, nesse dia, sua mãe havia chamado uma espécie de médium para ir à sua casa,ascendido velas e feito orações. "Acho que ela e minhas irmãs fizeram macumba para mim e foi por isso que eu tive essa crise. Foi coisa do diabo".
Nesse atendimento, digo a Vanessa que é importante o fato de ela ter localizado que o trabalho no interior, como artesã, lhe fazia bem e que ficar morando em casa com a mãe lhe fazia mal. Vanessa diz que já está dando um jeito de fazer as malas de novo para voltar para o interior e continuar os trabalhos. Quer ficar o maior tempo possível lá. "Eu tenho muita coisa para ensinar. Quero ficar perto de quem gosta de mim". Vanessa diz que não está mais precisando de medicação, pois está ótima, mas que gostaria de poder contar com o Ambulatório, caso precisasse. Perguntou-me se poderia vir uma vez por mês para fazer acompanhamento. Apesar desse acordo, Vanessa não comparece regularmente. De tempos em tempos, liga desmarcando as consultas, pergunta se pode ser atendida pelo telefone, envia fotos que mostram como ela está mal e abatida, deitada na cama, sem forças para levantar e
vir aos atendimentos. Sua queixa mais recente é a de que, desde que foi expulsa de casa pela
mãe, sua depressão "está voltando".
3.2 Discussão
Uma leitura fenomenológica destacaria de imediato, no caso de Vanessa, o relato da ocorrência de fenômenos alucinatórios de caráter auditivo (as vozes que ela escuta desde os 12 anos de idade), visual (as visões de vultos e almas de pessoas já falecidas; os vergões e marcas de chicote que ela vê aparecer nos braços e nas pernas) e cinestésico (sensação de que
o corpo está sendo jogado de um lado para o outro, contra as paredes).
Todos esses poderiam ser considerados fenômenos típicos de transtornos psicóticos e quadros esquizofrênicos. No entanto, é curioso que as vozes que Vanessa escuta não sejam perturbadoras ou invasivas, como normalmente se observa em casos de psicose: não pronunciam palavras de injúria e nem ordenam comandos. Elas apenas chamam pelo nome da
paciente. Além disso, é curioso que as experiências alucinatórias de visões de vultos e pessoas
mortas, bem como a vivência do aparecimento dos vergões nas pernas e a sensação de que o corpo está se movendo são caracterizadas pela paciente como algo ligado ao "sobrenatural" . Tendo em vista a tradição religiosa espírita da família de Vanessa, não seria exagerado supor que esses fenômenos poderiam ser ilusórios, ao invés de alucinatórios, como ocorre nas chamadas ilusões catatímicas, que podem ser influenciadas pela própria vontade do paciente,
quando este se encontra em estados de exaltação emocional.
Mesmo uma leitura psicanalítica poderia apontar para um diagnóstico de psicose,especialmente se levarmos em conta tudo o que se tem discutido atualmente sobre as psicoses ordinárias. O termo foi proposto por Miller na tentativa de driblar a rigidez de uma clínica binária, dividida entre psicose e neurose. Segundo Miller, a decisão diagnóstica entre uma estrutura e outra é particularmente mais difícil nos casos de histeria "porque há frequentemente na histeria alguns sinais de uma certa ausência do corpo, de uma certa desordem no corpo, vocês podem se perguntar se essa desordem vai a ponto de não mais concernir à histeria, mas a uma psicose" (MILLER, 2006, p. 403). No caso de Vanessa, poderíamos nos perguntar se a circulação excessiva da paciente por serviços e profissionais da saúde (nutricionistas, psicólogos, homeopatas, fonoaudiólogos, ginecologistas, neurologistas etc.), em busca de uma explicação para o mal que acomete seu corpo, seria uma via de estabilização, de amarração, uma suplência à ausência da inscrição do significante do Nomedo-Pai.
Na mesma linha de raciocínio, poderíamos pensar que a súbita melhora da paciente, quando esta se engaja no trabalho na feira de produtores e artesãos do interior, seria uma espécie de estabilização. Miller, ao falar da "desordem na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito", refere-se a uma tripla externalidade: social, corporal e subjetiva. Com relação à externalidade social, que corresponde a uma identificação do sujeito a uma função
social, ele observa:
Digamos, quando estes sujeitos investem muito no seu trabalho, na sua posição social, quando têm uma identificação bastante intensa com sua posição social. Vocês podem ver então − e isso ocorre constantemente − psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psicose, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse trabalho
era seu Nome-do-Pai. (MILLER, 2006, p. 413).
Poderíamos pensar, por exemplo, que esse seria o caso de Vanessa. Sabemos, no entanto, que ela desistiu do trabalho no interior, que lhe fazia tão bem, por livre e espontânea vontade, e que decidiu retornar a Belo Horizonte, onde vivia em constantes desavenças com a mãe, também por decisão própria. Não ocorreu nenhuma contingência que a fez perder o laço com o trabalho. Ora, um psicótico ordinário que se estabilizasse a partir do trabalho dificilmente provocaria as condições que o levariam a uma desestabilização. Além disso, sabemos que o sujeito histérico também experimenta uma desordem na relação com seu corpo. Miller propõe que a distinção entre uma neurose e uma psicose "frequentemente é uma questão de intensidade, uma questão de mais ou menos" (Miller,2006, p. 411).Mas, em nossa prática clínica no estágio do Ambulatório Bias Fortes, ao invés de seguirmos nessa linha da intensidade, temos optado, como mencionado anteriormente, por exercitar um outro tipo de raciocínio clínico. Trata-se de identificar qualitativamente a presença ou não da função fálica. Segundo Antônio Teixeira (em texto inédito), será considerada fálica toda solução sintomática que abrigar uma contradição na articulação paradoxal do gozo com seu modo de subtração. No caso de nossa paciente, poderíamos perguntar: a solução sintomal de Vanessa abriga uma contradição? Em outras palavras: há uma dialetização possível na posição subjetiva que esse sujeito ocupa? Sabemos que, se sim, então sua solução sintomal articula-se ao falo, o que apontaria para uma neurose; se não, então sua solução não se articula ao falo, o que apontaria para uma psicose.
Antes de respondermos a essa questão, é preciso retomar com calma os pressupostos teóricos que sustentam a proposição de que uma solução que abriga uma contradição é fálica.Por que é possível afirmar isso? Retomemos as bases mais elementares da teoria. O Nome-do-Pai surge comosubstituição do lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe. Na prática, a criança percebe que, além de mãe, sua mãe é também mulher de um homem. Isto é, a criança percebe que a mãe deseja algo para além da própria criança. O Nome-do-Pai surge,portanto, como substituição para a falta da mãe e para a falta na mãe. Sua introdução nomeia essas faltas. Em suma, a entrada em jogo do significante fálico aponta para dois fatos
complementares: primeiro, que a mãe deseja e, portanto, que é castrada; segundo: que o desejo da mãe vai em direção ao significante supostamente capaz de preencher sua falta, de suprir sua castração. O Pai, como metáfora, é colocado na posição de possuidor do falo, daquele que pode prover a falta observada na mãe. Isso significa, então, que o Desejo da mãe inaugura para a criança um enigma (o que sou para o outro? o que o outro quer de mim?), que
é metaforizado pelo Nome-do-Pai. É a partir daí que podemos compreender o falo como indexador do sujeito ao campo do Outro, isto é, como operador da separação da criança em relação à mãe, o que, por conseguinte, introduz a criança, pelo efeito mesmo dessa interdição
original, na lei simbólica, na lei da troca social.
É a lei simbólica que cria, portanto, a falta pela qual se institui o desejo. O sujeito só se constitui enquanto sujeito castrado, já que seu bem mais precioso, a mãe, é um bem inatingível. Uma vez introduzido na via do desejo pela incidência da lei, o gozo completo é marcado pela impossibilidade. O desejo, desde então, é somente desejo de que o Outro o deseje.
Como sabemos, na psicose, o operador fálico que inaugura para a criança o enigma acerca do desejo do Outro não funciona, pois o ponto instaurador do enigma foi forcluído. O sujeito neurótico, ao contrário, está às voltas com o enigma simbólico (o que sou para o outro?), sinal de que houve recalque, de que o sujeito ficou simbolicamente interditado. Na neurose, portanto, o gozo indexado ao falo pelo Nome-do-Pai confronta-se com os efeitos de subtração simbólica promovidos pela própria incidência do Nome-do-Pai, de forma que a satisfação pulsional estará sempre articulada à sua perda. A função fálica opera na presença do que foi subtraído. A solução sintomal neurótica repousará sempre, portanto, sobre a coexistência de duas condições contraditórias: a satisfação pulsional e sua perda. Retornemos agora ao caso. Onde poderíamos localizar a contradição na posição subjetiva de Vanessa? Ao falar do lugar que ocupa na família, Vanessa se coloca como uma exceção. Ao contrário das irmãs, ela nunca fora amada pela mãe. É a única filha que cresceu longe da casa da família, tendo sido criada praticamente pela avó. Ainda durante a gravidez, sua mãe recebera uma maldição: a filha que ela esperava nasceria com cara de cachorro. Em razão dessa contingência, a mãe de Vanessa demora a conseguir "olhar para a cara" daquele bebê. Apesar disso − e tendo tudo, portanto, para ser a ovelha negra da família −, Vanessa é a única dentre as irmãs que não se torna vagabunda, que não explora os outros. Ela é, como frisa nos atendimentos, " correta, honesta, certinha, batalhadora" . O significante vagabunda parece remeter, também, ao campo do amor. Afinal, é quando a sogra insinua que ela teria um amante que ela produz o que parece ter sido uma crise conversiva.Ou seja: ao mesmo tempo em que ela é a filha rejeitada, de que a mãe menos gosta, que nasceu "com cara de cachorro", é também a única que sabe trabalhar, que tem um saber sobre o artesanato a transmitir. Trata-se de uma rejeitada que ascende a uma posição moralmente nobre. Vanessa é uma espécie de ovelha negra às avessas. Sua solução sintomal, neurótica, constrói-se sobre essas duas condições contraditórias, paradoxais. Assim, ao nos aproximarmos do caso de Vanessa – ou de qualquer outro paciente – buscando pensar seus sintomas a partir de sua articulação ao falo, estamos utilizando um critério lógico que diferencia qualitativamente as soluções da neurose e da psicose sem cair na rigidez binária da clínica estrutural. Esta parece ser, a meu ver, uma maneira interessante de se pensar o diagnóstico em psicanálise sem desconsiderar a singularidade de cada caso, dando lugar para a coexistência da tensão entre sujeito e estrutura.
Referências Bibliográficas
DELEUZE, G. (2006). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In: A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras.
(Trabalho original publicado em 1972).
DUNKER, C. I. L. (2015). Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São
Paulo: Boitempo.
IANNINI, G. (2011). A estrutura e seus efeitos: o simbólico de Lévi-Strauss a Lacan, via Koyré. Revista Curinga,
nº 32, pp. 117-132. Belo Horizonte: Escola Brasileira e Psicanálise – Seção Minas.
LACAN, J. (1960). "Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: 'psicanálise e estrutura da personalidade'".
In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (2008). O seminário, livro 3: as psicoses. (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Lições
originalmente pronunciadas em 1955-1956).
LACAN, J. (1973/2003). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar.
MARCELO, F. (2000). O estatuto do sujeito em Jacques Lacan: o Cogito cartesiano, a ciência moderna e o
estruturalismo como operadores nucleares para a formalização do sujeito da psicanálise. Dissertação de
mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
MILLER, J.-A. (1997). Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica – a Conversação de Arcachon.
São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.
MILLER, J.-A. (2006). A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan. Revista Curinga, nº 23. Belo Horizonte:
Escola Brasileira e Psicanálise – Seção Minas, pp. 15-33.
MILLER, J. A. (2012) Efeito de retorno sobre a psicose ordinária. In A Psicose Ordinária. Belo Horizonte:
Editora Scriptum.
MILLER, J.-A. (1997). Discurso do método psicanalítico. In: Lacan Elucidado: Palestras no Brasil. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. Texto originalmente proferido em 1987.
QUINET, A. (2006). Psicose e laço social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Zahar.
SOLER, C. Los diagnósticos, Freudiana nº 16, Barcelona, 1996, pp. 21-33.
TEIXEIRA, A. M. "Já não creio mais em minha psicótica" (considerações intempestivas sobre a psicose
ordinária). Trabalho inédito.
VIEIRA, M. A. Dando nome aos bois, sobre o diagnóstico em psicanálise. In: Ana Cristina Figueiredo (Org.).
Psicanálise, pesquisa e clínica. 1 ed. Rio de Janeiro: IPUB/UFRJ, 2001, v. 1, pp. 171-181.
Recebido em: 13 de Setembro de 2015
Aceito em: 22 de Setembro de 2015
|
|