ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 01 Janeiro de 2007 a Abril de 2007
 
   
 
  Relato de Experiência  
     
 
Essa seção destina-se aos relatos de experiência extraídos das intervenções feitas pelo projeto de pesquisa “Avaliação dos efeitos discursivos da capscização no Estado de Minas Gerais, à partir de sessões clínicas realizadas em vários CAPS (Centro de Atenção Psicossocial ) , tanto da capital quanto do interior do Estado.
Cada caso, é considerado em sua singularidade, interessando-nos o ponto de vista diagnóstico, as dificuldades de manejo, os impasses político-institucionais, passando pela circulação e articulação na rede de cuidados necessários a cada sujeito. De cada relato, foram extraídos os aspectos mais significativos, e as questões emergentes seguidas de suas elaborações.
Algumas modificações foram feitas para preservar oculta a identidade do paciente.
 
     
 

Equipe de Pesquisa

 
     
  . Da condição universal do desamparo à percepção singular do engano.  
     
 

. Luiz iniciou seu tratamento no CERSAM em meados de 1998. Na época tinha 24 anos e chegou encaminhado pela polícia após episódio de agressão a uma vizinha. Segundo nos foi relatado, após um período de isolamento, ele para de trabalhar, começa a vagar pelas ruas, sujo, faminto, catando guimbas de cigarros, xingando e ameaçando pessoas. Momento de um desencadeamento psicótico caracterizado por insônia, delírios de cunho persecutório, perplexidade, alucinações auditivas com vozes de comando, assim como episódios de heteroagressividade e péssimas condições de higiene, tendo como hipótese diagnóstica inicial - esquizofrenia paranóide.

. Esse quadro teve início após a separação de uma companheira com quem vivia há 2 anos. Ao que consta, ela teria fingido estar grávida, “enganando-o”, como ele mesmo frisa. Alguns anos depois, já em tratamento no CERSAM, ele descobre ser portador de HIV, como também que sua companheira era soropositivo e havia morrido de AIDS, sem que ele soubesse na época, fato que provocou uma desestabilização no caso durante o tratamento. A isso se acrescenta uma experiência anterior, em que outra companheira fizera um aborto sem lhe comunicar a decisão, levando-o igualmente a se sentir enganado.

. Segundo o relato da equipe, ele teria perdido sua mãe aos três anos de idade. Vivera então sob os cuidados dos irmãos, até que, no momento em que completou seis anos, seu pai se casou novamente com uma garota de 14 anos de idade. A convivência foi permeada de conflitos. Ele não aceitava a substituição da mãe, assim como os irmãos também não a aceitavam e saíam de casa para morar sozinhos, deixando Luiz, por ser muito pequeno, com o pai. Aos 14 anos, Luiz saiu de casa em função de ter arranjado um trabalho fora, e só retornou aos 19 anos. Dispondo de algum dinheiro, montou sua casa e levando uma vida dedicada ao trabalho, às mulheres e às drogas.

. Luiz reencontrou Lia, moça que conhecia desde a época de sua adolescência, a quem considerava como amiga e grande confidente. Nessa época, período do desencadeamento da doença, Luiz, que passara a ser vizinho de Lia, começou a segui-la e a vigiá-la, numa atitude erotomaníaca que o levou a achar que ela também o vigiava, olhando todo o tempo para dentro de sua casa. Essa situação ficou tão intensa que Luiz construiu um buraco na parede de seu quarto, a qual separava sua casa da dela, para espioná-la, pois afirmava que Lia o enganava e ficava com outros rapazes só para provocá-lo. Surgiu uma construção delirante onde tal buraco se tornou o local para que outras pessoas o vigiassem também, fazendo com que, de perseguidor, ele passasse a ser o perseguido. Nessas condições, Luiz chegou a agredir Lia fisicamente: ele a perseguiu com uma faca e tentou enforcá-la com uma corrente, vindo a ser detido pela polícia e encaminhado para tratamento. Mesmo depois de todo este processo, ele continuava vigiando-a e mantendo uma atitude hostil e ameaçadora com a vizinhança, intimidando as pessoas ao portar uma faca. Foi rejeitado no bairro, chegando a ser agredido e correndo risco de linchamento. O CERSAM fez uma intervenção na comunidade para apaziguar as relações e Luiz foi morar com um irmão e a sua esposa.

. Uma outra situação que o desestabilizou profundamente, foi a chegada de um bebê adotado pelo irmão e a esposa, casal com quem morava e que ainda dava um suporte a Luiz. Mais uma vez ele se sente enganado por não mais receber o tratamento exclusivo, o qual sentia como seu direito antes da chegada da criança.

. A repetição de uma postura hostil e ameaçadora acabou gerando uma grande insegurança e intolerância do casal. Diante da impossibilidade de morar sozinho ou com seus familiares, Luiz passou a viver então numa moradia protegida, seguindo orientação de seu tratamento.

. Na moradia, surgem novos problemas. Desenvolve um comportamento erotomaníaco em relação a uma funcionária. Por ocasião de uma encenação teatral de festa junina, com quadrilha e casamento na roça, Luiz se ofereceu para ser o noivo enquanto Lúcia, a referida funcionária, seria a noiva. Após a festa, Luiz começou a tratá-la com certa “delicadeza”, demonstrando-se enamorado por ela, a ponto de enviar-lhe flores. Nesse momento, não aceitava o que se explicava a ele, que tudo fora apenas uma brincadeira teatral. Furioso, dizia que o fizeram de “bobo” e que não ia desfazer casamento algum, chegando a dizer aos outros funcionários e moradores que a odiava e iria matá-la. A situação foi controlada. Entretanto, posteriormente, Lúcia engravidou, e acabou tendo que se afastar por alguns dias, devido às constantes ameaças de Luiz.

. De outra feita, Luiz ameaçou também de morte outra funcionária da moradia hamada Lia, tomando-a por sua ex-vizinha que ele outrora havia atacado. Depois do ocorrido, Lia não quis mais voltar a trabalhar na casa, o que acentuou os problemas de Luiz com os demais moradores da casa.

. O que se destaca, em meio a todos esses episódios, é que Luiz sempre justificava sua agressividade por se sentir enganado. “Ser enganado” era invariavelmente a matriz interpretativa que dava sustentação a sua posição persecutória, na qual exigia um lugar de exceção e reparação. Luiz sempre buscava fazer valer suas exigências através de condutas agressivas e ameaçadoras, o que tornava extremamente difícil a sua permanência tanto em casa quanto na moradia ou no CERSAM, trazendo grandes dificuldades na condução do tratamento.

. Foi em meio a tal contexto que se realizou uma conversação clínica para construção do caso. Verificamos nesse momento que Luiz, ao presenciar uma certa desarticulação da equipe que dele se ocupava, a esta respondia com sua conduta de violência, ora apontando suas falhas, ora estabelecendo-se como aquele que ditaria as regras da instituição. A equipe muitas vezes ameaçada e fragmentada diante de suas atuações, respondia de forma amedrontada permitindo que ele impusesse suas exigências a todos, ou então respondia tentando enquadrálo em normas, algumas vezes gerando atitudes pedagógicas que não apresentavam efeitos relevantes. Verificamos que seria importante uma resposta da equipe que considerasse o discurso clínico, buscando circunscrever a posição desse sujeito na relação com o Outro e não o discurso moral ou disciplinar, voltado apenas para seu comportamento. Para tanto, seria necessário localizar a posição de Luiz com relação aos que, a seus olhos, constituíam-se como representantes da ordem simbólica.

. Ao longo da construção clínica do caso, foi destacada a posição de Luiz de “ser enganado”. Ressaltamos dois episódios importantes como pontos que levam Luiz à desestabilização e que passam por essa posição: o primeiro na encenação de casamento que foi feita na moradia assistida por ocasião de uma festa junina e que foi tomada por ele ao pé da letra. O simbólico se fez real e ele não tolerou que aquilo fosse uma brincadeira. Assim, desenvolveu uma erotomania pela funcionária culminando em seguida em uma perseguição. A outra situação foi sua resposta à gravidez da mesma funcionária, que ao fazer retornar a cena do aborto de uma antiga companheira por quem sentiu-se enganado, acaba por intensificar a relação persecutória.

. Foi se evidenciando que o fator desestabilizador de Luiz estava associado aos momentos de sua percepção de “ser enganado”, bem como sua resposta a esses momentos que era caracterizada pela necessidade de validar suas exigências através de atitudes violentas e ameaçadoras. Dentro da estrutura psicótica, sem a possibilidade de uma amarração simbólica que efetive uma estabilização, ele está totalmente no campo do sentido onde a significação dos fatos ocorrem a partir de interpretações delirantes, independentes do contexto onde estão incluídas. Afora isso, ele não permite tampouco dissociar a pessoa do nome próprio, como se verifica em sua atitude em relação à funcionária Lia, cujo nome o remete a uma experiência anterior em que ele se sentira preterido.

. Salientamos, então, que o binômio “abandonado-enganado” não comporta para ele um efeito de metáfora. Abandonado pela mãe e enganado por todos, estes significantes que entram na mesma série, na mesma seqüência lógica, num mesmo campo semântico, o levam a reivindicar uma posição de exceção, que de certo modo se repetem em metonímia através do deliro de reivindicação, que determina sua trajetória e sua posição na relação com o Outro.

. Mas o fato é que a experiência de abandono vem a ser uma condição universal do sujeito – constatada por Freud, desde o Entwurf, e reafirmada por Lacan, nas últimas lições do seminário VII. Abandono que se deflagra na rede pública, onde a miséria, o abandono familiar e social se confundem com o quadro clínico, sendo que a resposta a essa condição consiste, por sua vez, na impessoalidade igualmente universal do tratamento para todos. Diante disso, o que define a singularidade de Luiz diz respeito à violenta recusa do engano. Ser abandonado, para Luiz, é ser enganado, e é contra isso que ele constantemente se coloca, ao reivindicar ser tratado em posição de exceção. Diante, assim, do significante que engana, Luiz recorre a violência, dela se valendo, como quem bate na mesa, para produzir um efeito inequívoco de sentido que a linguagem por si só não autoriza.

. A construção do caso clínico passa pela necessidade de localizar o particular do sujeito. Neste relato destacou-se um ponto de direção da cura: o congelamento do binômio abandonado-enganado para Luiz, que o leva à a reivindicar uma posição de exceção que deve ser esvaziada.

. A questão que então se levantou, a partir dessas considerações, foi como tratar o caso singular, sem fazer coincidir o singular com a demanda de exceção. Verificou-se que era possível, entre outras coisas, trivializar situações por ele interpretadas como propósito de engano, fazendo-o ver que se tratava apenas de falhas inerentes ao funcionamento de qualquer instituição e, por que não dizer, do próprio funcionamento da comunicação entre seres falantes. Tal como podemos observar nos exemplos seguintes: Luiz foi ao Banco com a acompanhante terapêutica da moradia para abrir uma conta-corrente. Chegando lá, ele não pode abrir a conta porque seu endereço não estava atualizado, sendo tal fato informado pela atendente. A primeira reação de Luiz foi uma interpretação delirante de que estava sendo enganado pelas pessoas do Banco, demonstrando-se irritado. Diante dessa situação, A AT respondeu-lhe: “isso acontece com todo mundo, e não é só com você! Essa intervenção o apaziguou naquele momento. Em outra ida ao Banco para retirar dinheiro, após enfrentar longa fila no caixa eletrônico, e chegada a sua vez para fazer a retirada, o sistema saiu do ar, sendo impossível realizar a operação. Ele, já demonstrando indícios de hostilidade, tranqüilizou-se após a intervenção da AT que lhe disse: “que azar hein, Luiz!”. Isso permitiu, entre outras coisas, levá-lo a tolerar melhor as situações esvaziando pontualmente as interpretações delirantes, o que resultou numa redução considerável das ameaças e das atuações violentas. A equipe observou que poderia abordá-lo em sua singularidade, sem dela fazer um privilégio, no sentido em que ele não poderia se sobrepor às regras, bem como percebeu que o papel da instituição na relação com Luiz era mostrar para ele, via trivialização das situações, que o engano faz parte da vida, e que o Outro se engana, e não que o Outro o engana, pois todos nós estamos sujeitos a nos depararmos com os enganos do dia a dia.

. O efeito da construção do caso clínico, que possibilitou localizar a lógica de funcionamento do sujeito, incidiu sobre a equipe que operou uma mudança marcante no cenário da instituição. A equipe, sabendo no que intervir – ou seja, na posição do sujeito e não em seu comportamento, se localizou enquanto um Outro capaz de um manejo melhor. Houve um claro apaziguamento de Luiz, que se tornou mais participativo e colaborador, introduzindo palavras onde sobravam atuações. Do tipo clínico esquizofrênico paranóide se isola um sujeito “abandonado-enganado” que, diante de certas manobras na transferência, responde com uma posição mais esvaziada do gozo que antes transbordava em suas reivindicações. Ao se situar fora dos discursos estabelecidos, este caso encontra seu ponto de ancoragem num discurso construído a partir de uma relação mais suportável com Outro institucional.

 
     
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