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ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 25/26 Janeiro a Junho de 2015
 
   
 
   
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SAÚDE MENTAL, ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E PSICANÁLISE: UMA PRÁTICA DE CUIDADO

MENTAL HEALTH, PSYCHOSOCIAL CARE AND PSICHOANALISIS: ONE HEALTHCARE PRACTICE

 

 
     
 

João Paulo Zerbinati Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Mestrando em Educação Sexual pela Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Araraquara. joaopaulozerbinati@hotmail.com

 

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir o entrelaçamento possível entre o manejo clínico psicanalítico e as esferas políticas e psicossociais no tratamento de enfermidades psíquicas graves. Através da apresentação de uma experiência clínica de orientação psicanalítica inserida em um equipamento de Saúde Mental, apresenta-se um modo de trabalho sensível ao desenvolvimento individual, técnico e teórico de uma prática profissional subjetiva amparada pela clínica psicanalítica e pelas articulações de manejo referenciado às políticas públicas em Atenção Psicossocial. A partir dessa estratégia de atuação em Saúde Mental, atenta aos vínculos terapêuticos disponíveis em nível multidisciplinar e um acolhimento biopsicossocial do sofrimento psíquico, foi possível discutir horizontes na atenção integral ao usuário dos serviços da Rede de Saúde Mental e Atenção Psicossocial.

Palavras-chave: Saúde Mental; Psicanálise; Atenção Psicossocial; Experiência Profissional Abstract: This work aims to discuss the possible interweaving between psychoanalytic clinical management and the political and psychosocial spheres in the treatment of severe psychic illnesses. Through the presentation of a clinical experience of psychoanalytic orientation inserted in a Mental Health equipment, a work mode is presented sensitive to the individual, technical and theoretical development of a subjective professional practice supported by the psychoanalytic clinic and the articulations of management referenced to the policies In Psychosocial Care. Based on this strategy of action in Mental Health, attentive to the therapeutic links available at a multidisciplinary level and a biopsychosocial reception of the psychic suffering, it was possible to discuss horizons in the integral attention to the user of the services of the Mental Health and Psychosocial Attention Network.

Keywords: Mental Health; Psychoanalysis; Psychosocial Care; Professional Experience.

CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 43 Morremos e vivemos em numerosas situações nas quais não estão em jogo nossas batidas cardíacas, senão o pulso do nosso desejo. Preterido, esquecido, escondido embaixo de muitas camadas impossíveis. (CAMPOS, 2013) Longas internações em instituições totais, condições desumanas, maus tratos, saberes reduzidos que corroboram com inadequados convencionalismos sociais.

Essa era a face predominante das práticas em Saúde Mental em um passado não tão distante. Este passado, aos poucos se destrói e a partir de mudanças políticas, sociais e teórico/técnicas se reconstrói em um novo campo de saber chamado Reforma Psiquiátrica. Neste novo contexto, propõe-se que as intervenções nas enfermidades mentais graves possam ser devidamente desinstitucionalizadas, acolhidas, tratadas de modo multiprofissional e humanizado, tendo como finalidade a melhora da qualidade de vida dos pacientes. O sujeito que antes poderia eternamente permanecer trancafiado, atualmente, em tempos de pós reforma, pode contar com ajuda especializada para se desfazer de suas amarras mentais e sociais. A Reforma Psiquiátrica teve seu marco inicial em meados da década de 1970 na Europa e se espalhou pelo mundo, chegando ao Brasil aproximadamente uma década mais tarde.

A proposta da Saúde Mental brasileira deriva principalmente do modelo de reforma psiquiátrica italiana e destaca como central a pessoa que sofre, sua história, seu processo de individuação, o constituído como entorno da doença e não puramente à doença e seus sintomas. Para tanto, no lugar da reclusão para minimizar as interferências e permitir o tratamento de uma doença puramente orgânica, a proposta é trazer o doente mental para a vida no grupo social, pois além de ser seu direito enquanto cidadão, se avalia que o tratamento para a doença psíquica - não mais puramente orgânica, mas também social - se faz terapêutico no núcleo dos problemas do sujeito, sendo nesta conjuntura que ele deve ser capaz de viver (AMARANTE, 2007).

Refere-se à clínica ampliada, uma clínica na qual “incorpora nos seus saberes e incumbências a avaliação de risco, não somente epidemiológicos, mas também social e subjetivo, do usuário ou grupo em questão” (CAMPOS, 2012, p.101). Muito além da psiquiatria, da doença ou da própria psicanálise, o manejo nesta proposta se caracteriza por englobar não apenas um tipo de conhecimento. A natureza do campo da saúde mental contribui para que se comece a pensar de maneira diferente, com transversalidade de saberes. De modo que, em saúde mental e atenção psicossocial, CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 44 [...] o que se pretende é uma rede de relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam – médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muitos outros atores que são evidenciados neste processo social complexo - com sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários e familiares e outros atores sociais (AMARANTE, 2007, p.82). Tendo como ponto chave a desinstitucionalização, se insere assim, através de suas várias portarias ministeriais, a proposta dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e Serviços Residenciais Terapêuticos (moradias).

Estes são componentes centrais às novas intervenções em saúde mental, que viabilizam com que o tratamento ao dito louco seja executado em seu próprio território (BRASIL, 2004). Há de ser enfatizado que “reformar” não se trata de uma simples mudança de teoria ou prática, “mas de demolição de uma cultura, possível somente se, contemporaneamente, outras culturas pudessem ser construídas: outra sustentação, outro suporte, outro conceito de saúde e de doença, de normalidade e de loucura” (AMARANTE, 1996, p.11). A nova rede em Saúde mental conta com atividades terapêuticas desde individuais até grupais, passando por psicoterapias, oficinas terapêuticas, atendimento familiar, assembleias, consultas para prescrição de medicação, oficinas de trabalho, atividades de reinserção social, intervenções na comunidade, enfim, tem-se uma oferta ampla, que engloba não só o cuidado mental clínico propriamente dito, mas as incumbências em âmbito da reabilitação psicossocial, norteadores básicos para o planejamento das atividades a serem oferecidas. Independentemente da atividade, pela organização e pelo manejo técnico, tudo o que acontece em um CAPS pode ser entendido como terapêutico, desde atividades específicas ou mesmo o simples “estar lá, inserido em um meio acolhedor, em um ambiente terapêutico” (SOUZA, 2003 citado por RIBEIRO, 2005, p.38).

A aposta na mudança do modelo assistencial origina não somente novas tecnologias e equipamentos, mas uma rede de serviços substitutivos e, em especial, a criação de novas maneiras de cuidado. Esta mudança de paradigmas está desde seus primórdios, profundamente marcada pelas mudanças propostas pela Psicanálise, que organiza a psique humana como campo de saber. Sigmund Freud (1856-1939) ao dar voz às histéricas legitima o sofrimento e cria um novo método tendo como base fundamental a escuta sem julgamento e aberta para acolher a paixão do ser humano que fala tal como se apresenta, com suas angústias e pulsões mais vívidas.

Há, portanto, pontos de extrema consonância e proximidade entre a Reforma Psiquiátrica e a Psicanálise: [...] ambas partem do pressuposto ético de que o louco é um indivíduo com voz, capaz de dizer sobre si mesmo, e de que sua loucura, portanto, não é CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 45 doença a ser tratada e, consequentemente, curada, mas uma produção plena de sentidos que deve ganhar, no âmbito do sujeito, lugar de existência subjetiva e territorial, contorno, amarrações que viabilizem uma localização (inscrição) desse ser no mundo em que vive. Tratar de um louco seria, dessa maneira, criar dispositivos para que o mesmo possa ter lugar, se territorializar, estabelecer redes com o refinamento necessário para garantir algo que possamos chamar de vida (RIBEIRO, 2005, p.35). A psicanálise nos ajuda a compreender que as dificuldades de elaboração do sujeito psicótico, maior demanda dos CAPS, emanam de sua própria estrutura, é “marcada pela ausência de um significante primordial que amarre a cadeia simbólica onde ele está inserido, o que determina uma relação particular com o Outro, diferente da que ocorre na neurose” (RINALD; CABRAL & CASTRO, 2008 p.122).

Essa condição deve ser respeitada no manejo terapêutico aos usuários do serviço de Saúde Mental, e deve levar a projetos terapêuticos singulares, respeitosos quanto à história de vida de cada paciente. Nesse mesmo sentido, a partir da Clínica Ampliada, o Ministério da Saúde (2008) propõe que as intervenções em saúde mental tornem prática corriqueira o conhecer singular de cada paciente, através de uma escuta integral ao indivíduo em sofrimento. Da mesma maneira, pela técnica psicanalítica, tem-se como objetivo maior conseguir “designar um lugar de existência subjetiva, de inscrição não apenas no mundo das relações, mas no mundo psíquico, naquilo que o humano tem de mais singular, acompanhar uma disponibilidade de escuta, reflexão, crítica e criação” (RIBEIRO 2005, p.39). Algo complexo, alcançado a partir da sustentação de um espaço de tratamento protegido e único, no qual um sujeito singular pode vir a existir. Propõe-se a partir dessa lógica, fazer de maior instrumento a fala do sujeito (do inconsciente).

Escutar, acolher as palavras e as produções psicóticas, neuróticas ou perversas e a partir da relação transferencial criar condições para emergir seus conflitos e a singularidade enquanto sujeito, construindo um caminho terapêutico em via dupla, a partir do desejo do paciente e das possibilidades transferenciais e contratransferenciais. Escutar em clínica ampliada é considerar o desejo do sujeito, é possibilitar que ele trace seu próprio percurso e indique o direcionamento de seu tratamento. É preciso que o analista esteja atento a pontos como este para então, dentro da instituição, poder contribuir transdisciplinarmente (RINALD; CABRAL & CASTRO, 2008). Cabe ao terapeuta psicanalítico, neste contexto, ter a capacidade interna para ser genuíno, aberto, respeitoso e acolhedor quanto às dores e necessidades do paciente/usuário. Sendo capaz de criar um ambiente acolhedor, livre, seguro, e suportar os sentimentos poderosos desencadeados na relação transferencial, atentando-se a questões referentes ao CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 46 vínculo, postergando interpretações mais elaboradas para quando a aliança terapêutica estiver solidificada e finalmente, respeitar o direito do paciente sentir medo de enfrentar as dúvidas da mudança, preferindo permanecer na doença (GABBARD, 1998; ZIMERMAN, 2004).

Análise de caso A análise de caso a seguir tem como objetivo apresentar o percurso de um trabalho clínico, de orientação psicanalítica, dentro de um serviço de saúde mental, assim como ilustrar alguns dos conceitos discutidos anteriormente e a interfase de tais práticas. A atividade aqui relatada foi construída a partir de atendimentos psicoterápicos, que compuseram parte das atividades de Estágio Supervisionado no último ano da graduação em Psicologia desenvolvidos em um equipamento de saúde mental, CAPS III, ao longo do ano letivo, em uma cidade do interior do Estado de São Paulo.

É importante destacar que esta atividade psicoterápica era apenas uma das atividades que compunham o projeto terapêutico da paciente, que será aqui referida como Clarice, fazendo referência a “Claire”, personagem do filme Melancholia (2011) e a “Clarice Lispector” (1920/1977), autora literária declarada pernambucana que trazia em suas obras a problemática da paixão existencial e uma valorização do mundo interno de suas personagens, um diferencial para a época, clássico contemporâneo e aspecto consonante com a temática deste trabalho. Conhecendo Clarice Meu1 primeiro contato com a história da paciente foi via prontuário do serviço de saúde mental, assim como discussão do caso com sua equipe de referência. De imediato, a partir dos relatos, certas questões na história de sua vida chamaram minha atenção. Clarice não conheceu seu pai, pois ele faleceu antes mesmo que pudesse criar qualquer tipo de vínculo ou simplesmente conhecer a caçula de seus dois filhos. Pouco se tem registro ou detalhes deste momento de rompimento, assim como, dos momentos relacionados à infância ou mesmo à adolescência da paciente.

A partir deste fato sua história registrada no prontuário 1O método psicanalítico para uma pesquisa qualitativa tem como pilar a Atenção Flutuante e Associação livre para a captura do material a ser estudado e organizado. Em Psicanálise, a criação se faz através da relação entre o jogo de fantasias de ambos interlocutores. Por tais âncoras metodológicas e epistemológicas compreendemos que é pertinente que a análise aqui descrita seja em primeira pessoa, enfatizando este duplo envolvimento necessário em Psicanálise, tanto por parte do paciente, quanto do terapeuta, assim como destaca Silva (1993), vindo também ao encontro dos pressupostos deste trabalho. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 47 dá um salto no tempo e nos leva até sua vida adulta, com o nascimento de suas duas filhas e salta novamente até seus episódios de crises, momento no qual Clarice já estava inserida no serviço de saúde mental.

O último surto da paciente aconteceu quando a administração de seu medicamento passou de via oral para injetável. Tal mudança foi interpretada pela paciente como um não tratamento por não haver nada de concreto sendo ingerido. O profissional de referência da paciente no serviço relata que neste momento de crise, Clarice estava muito persecutória e agressiva, e dizia: “não estão me tratando, querem que eu morra” (sic). Após esta última crise, a equipe de referência decide intensificar o tratamento de Clarice, modificando seu projeto terapêutico para permanência diária (todos os dias da semana) no CAPS, assim como retorno da medicação para administração via oral.

Quando houve o início do trabalho psicoterápico, a paciente já se encontrava mentalmente estável e aderia à proposta de permanência dia no CAPS três vezes por semana. Sua maior queixa, assim como da equipe, era conseguir controlar seu índice glicêmico, uma vez que Clarice era diabética e eventualmente havia um descontrole de sua taxa glicêmica, o que lhe causava mal estar físico. Clarice era uma jovem senhora que apesar de compor menos que meio século de vida, demonstrava pela fragilidade no olhar muitos anos acrescidos desses. Em atendimento, minha percepção inicial de Clarice foi de uma senhora tranquila, estabilizada, organizada, de fácil vínculo, entretanto, sem vida, sem ânimo, sem desejos, sem paixões.

Desde o primeiro atendimento, aspectos transferenciais importantes foram postos: a paciente se mostrava interessada em saber sobre minha vida particular, relacionada à família e relacionamentos afetivo-sexuais. O início do trabalho terapêutico Inicialmente, o grande tema dos atendimentos se referia ao diabetes. A paciente relatava angústia por não poder comer conforme seu desejo. Aos poucos, fomos elaborando tal questão e chegando ao ponto de compreender o diabetes, ou melhor, não controlar o diabetes, como um boicote ao tratamento, e a maneira pela qual a paciente encontrava de ser cuidada.

O ganho secundário da doença, ou seja, ser cuidada, se sentir cuidada, era o mais importante para Clarice. Neste momento ainda inicial do trabalho terapêutico, apesar de já se terem passadas algumas semanas desde seu início, a paciente começava a se vincular cada vez mais à minha CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 48 figura, a figura do psicólogo, figura de maior cuidado no CAPS para ela. A partir de então, as sessões que inicialmente não duravam mais de 20 minutos2 começaram a se estruturar de outra maneira. Clarice, após o importante período introdutório, sentia-se acolhida e passou, então, a acessar e trazer questões nas quais era possível sentir sofrimentos, angústias e fantasias relacionadas ao pai e aos ex-maridos, figuras masculinas com pouca participação na vida da paciente, entretanto, peças fundamentais. O encontro com seu núcleo melancólico Ela não conheceu seu pai como já mencionado, nem mesmo por fotos. Este faleceu no terceiro mês em que a paciente estava sendo gestada.

O único registro consciente que ela possui sobre este pai são as descrições da mãe, referindo ao patriarca da família como muito parecido com Clarice, além de ser um “homem muito bom, quieto e trabalhador” sic. A paciente não teve a possibilidade de conhecer de fato este homem, assim como, pouco teve possibilidades maiores de se vincular a outros homens. Seus relacionamentos amorosos foram muito rápidos, entretanto, modificaram a vida da paciente para sempre, pois lhe trouxeram o nascimento de suas duas filhas, uma de cada um deles. Em ambos os casos, os maridos romperam a relação conjugal logo após o nascimento das meninas.

Ao relatar sobre estes ex-maridos e sobre sua história com eles, Clarice chegava a se referir a eles como mortos, uma vez que ao deixarem a paciente após a gravidez de suas filhas, estes não só a fizeram reviver sua própria história em relação ao seu pai, como, simbolicamente, morreram igualmente ao pai, morreram sem se vincular a Clarice, morreram sem fornecer ajuda ou cuidado. Morreram e levam um pouco da vida da paciente, algo que Freud esclareceu muito bem em seu texto “Luto e Melancolia”: A sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo a perda do objeto se transformou numa perda do próprio eu (FREUD, 1917/2010, p.181). Conforme as sessões progrediam, mais e mais questões relacionadas a perdas eram trazidas pela paciente. O pai, o primeiro e o segundo marido e também a mãe, falecida há aproximadamente três anos. Clarice descrevia sua mãe de maneira idealizada, como uma figura de cuidado, talvez uma das únicas a oferecer um mínimo cuidado e prover ao menos um mínimo de afeto real para a filha.

Clarice relatava que sua mãe tinha muita preocupação 2 Era Clarice que sempre encerrava a sessão até aqui. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 49 de como seria a vida da filha, Clarice, quando a mãe viesse a falecer, ou seja, como seria a vida de uma estrutura psíquica infantil sem poder contar com o colo de seu cuidador, alguém que fornecesse identificações necessárias para se constituir psiquicamente. A mãe de Clarice intuía que a filha não obtinha suporte psíquico para se posicionar enquanto sujeito do próprio desejo, um desejo que estava “obrigado à intermediação da fala”, assim como proposto por Jacques Lacan (1957-1958/1999, p.369). A criança depende inicialmente da fala do Outro, da mãe, para em um segundo momento reconhecer seu próprio desejo, Clarice foi marcada pela ausência antes que pudesse fazer dessa falta a possibilidade para sua própria demanda. Nesse sentido, o ‘depois’ da morte de sua mãe esta sendo dificilmente construído.

Clarice era frágil em relação a si mesma, frágil em suas próprias emoções, precisava do outro para se constituir psiquicamente e, neste sentido, buscava aderir fortemente à outra pessoa. Não conseguia valorizar o que tinha dentro de si, não conseguia aderir ao bom, e pouco conseguia sonhar. Apegava-se adesivamente a um Outro, um Outro cuidador, um Outro “mãe”, um Outro “pai”. Apegava-se neste momento, principalmente a mim e ao seu profissional de referência dentro do equipamento de saúde mental. Essa transferência, por partir de uma paciente em certo grau regredida, foi bem aceita pelo terapeuta, pelo fato de representar uma importante e necessária tentativa de contrair um vínculo primário, assim como compreendido por Zimerman (2004).

Clarice reativou transferencialmente, no setting protegido, experiências arcaicas para poder construir o que não pôde ser construído com as figuras parentais originais. Uma tentativa saudável da paciente para continuar caminhando e se desenvolvendo psiquicamente, uma tentativa de internalizar a mãe boa, internalizar o bom para que pudesse num segundo momento resgatar esses objetos bons e poder superar suas perdas. Sentir-se segura em seu mundo interno é necessário para conseguir viver seguramente no mundo externo, assim como aponta Melanie Klein (1940/1996). O desafio da elaboração dos lutos De tal maneira, tínhamos agora, conteúdo suficiente para compreender melhor a causa de sua última crise. Ser medicada oralmente contribuía com uma dubla função psíquica: algo concreto era ingerido. Falamos de concretude e de oralidade, de uma dificuldade em simbolizar e uma necessidade de internalizar, esta última, remetendo ao cuidado primário necessário para que as próximas fases do desenvolvimento psíquico pudessem acontecer. Ser medicada oralmente seria interpretado inconscientemente como cuidado materno/paterno CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 50 concreto, tais como o seio e o leite representam ao bebê amor e segurança (KLEIN, 1940/1996). Questão necessária à paciente e que cumpria a função de lhe estruturar psiquicamente. Até o momento, destacavam-se basicamente duas questões como mais importantes para o quadro: todas as perdas e o cuidado.

Com isso, o trabalho focalizou-se em continuar proporcionando um espaço adequado para elaboração de angústias, lutos, fantasias e demais sentimentos que pudessem ser trazidos por Clarice ao reviver sua história. Neste contexto, além disso, a preocupação maior do terapeuta era conseguir um vínculo também com a parte de vida ainda existente em Clarice, parte que agora começava a aparecer. As atividades realizadas no CAPS, tais como geração de renda e oficinas terapêuticas de produção ocupacional, foram de extrema importância neste momento, pois eram as únicas experiências reais de criação e vida para a paciente. Mais que isso, faziam sentido para a paciente, estavam sendo simbolizadas de maneira positiva, com o bom sendo internalizado. Entretanto, mesmo com tais aspectos saudáveis se apresentando nos atendimentos psicanalíticos, aspectos melancólicos e regredidos eram muito difíceis de romper.

Clarice relatava possuir vontade de retornar a viver algo como em certos momentos de seu passado, quando saía com os amigos, mas num momento seguinte ao discurso de vida se fecha por medo da ameaça de morte real que está “lá fora, como passa todos os dias nos jornais” (sic). Este era o medo de sua própria potencialidade destrutiva. Após internalizar o objeto bom, o próximo passo foi então, se dar conta da parte destrutiva deste objeto e de sua própria parte destrutiva, como melhor compreenderemos a seguir.

Nos atendimentos consecutivos algo novo surge, e não por acaso o último relato de perda objetal para a usuária e é a meu ver, o mais significativo neste momento psicoterápico, uma vez que concretiza as fantasias destrutivas de Clarice. O filho da paciente nunca havia sido mencionado por ela até então, por conta de ter morrido com poucos meses de vida. Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas há uma possibilidade de que Clarice tenha, em um episódio em que o bebê estava com febre, medicado em excesso a criança e assim provocado sua morte. Sendo isto fato ou não, Clarice obtinha essa culpa, e demonstrava temer sua própria agressividade e os danos que isto pudesse causar. Não raramente explanava esse medo ao se identificar com notícias do tipo “mãe que mata filhas” e/ou “vizinho é assassinado por marido ciumento”.

Nesses casos, se identificava com o agressor, mas rapidamente reprimia a agressividade e se posicionava como defensora da moral e dos bons costumes. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 51 Os últimos passos em terapia foram fornecer condições favoráveis para que Clarice conseguisse entrar em contato com o que havia de mais destrutivo e voraz em seus desejos e em suas ações, pois neste momento demonstrava poder entrar em contato com tais aspectos, em uma sessão me pergunta se eu estava preparado para acolher suas “besteiras” (sic). Era ela quem agora estava preparada para falá-las. Trabalhamos no sentido de fazê-la simbolizar a impressão de que seus objetos internos maus pudessem dominar seu ego e assim desintegrá-la. Procuramos acessar pela palavra todas as questões já aqui trazidas e elabora-las para serem enfim sentidas e reeditadas a partir do novo momento, com a internalização do bom. Entretanto um trabalho limitado na ocasião com o final dos atendimentos se aproximando cada vez mais.

Com todas essas questões se fazendo presente, eu precisei entrar em contato com minhas próprias angústias para poder continuar trabalhando com a paciente. Contratransferencialmente as perdas de Clarice me atingiram e lidar com o fato de ter que encerrar os atendimentos no final de tantos meses (pois se encerraria o ano letivo e assim meu contrato com o CAPS), fez com que eu tivesse medo de compor mais uma figura de perda na vida da paciente, de não conseguir ter construído um trabalho sólido o suficiente para ter modificado em algum sentido tal questão em sua vida. Em supervisão foi possível observar que não somente uma “transferência concordante” estava presente, ao identificar a situação como potencial para interferir no campo analítico, mas também uma transferência de caráter complementar na qual eu estava “identificado com os objetos internos da paciente e suas identificações projetivas” (ZIMERMAN, 2004, p.143). Para tanto, conscientizar-se de tais questões em supervisão e num segundo momento elaborá-las em análise pessoal, foi essencial e fundamental para fazer possível o proveitoso uso dos efeitos contratransferenciais, transformando-os em empatia, servindo como um mapa para poder continuar ajudando o paciente em sua jornada terapêutica.

Manejar tais questões foram importantes e proporcionaram o possível manejo para que Clarice compreendesse e internalizasse as construções do processo terapêutico podendo encerrar com outra conotação que não de perda, mas uma experiência vincular com possibilidade em se fazer, talvez, presente por tempo indeterminado, inconsciente marcante pelo resto de nossas demais vivências. Clarice demonstrava ter internalizado este novo momento de maneira positiva quando colocou em palavras as construções e mudanças observadas. O caminhar até aqui possibilitou que ela se colocasse, ao menos minimamente, como cuidadora de sua casa, de suas filhas e de seu neto. Papel até então desconhecido pela paciente, ainda um pouco difícil de ser assumido, CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 52 porém importante para o quadro e que muito diz da construção analítica. Sendo cuidada em um espaço reservado, como já discutido anteriormente, ela pôde então, enfim cuidar. A estrutura psicótica fica evidente no caso descrito, Clarice não rompe completamente com a realidade, mas faz uma leitura da mesma tendo como pano de fundo suas angústias depressivas arcaicas. Seu ego era frágil e regredido, não criativo, e aprisionado no medo e na angústia de sua própria destrutividade e em suas próprias fantasias persecutórias.

O vivido era emocionalmente pouco sentido, pouco se captava emoção, pouco se colocava símbolo. Logo, uma grande dificuldade em colocar sua marca e viver criativamente. Muito foi possível ser criado e construído ao longo das sessões. Por se tratar de um equipamento de saúde, foi essencial haver perpassado os moldes clássicos de atendimento entre usuário-paciente-terapeuta, dando lugar, até certo ponto, para discussão em equipe multidisciplinar. E assim, entre o olhar técnico analítico e de referência institucional fazer sentido o trabalho psicanalítico em um equipamento de saúde mental e aproveitando toda potencialidade de ambas as intervenções. No último atendimento, Clarice se comportou tal como no início do processo terapêutico, mais quieta e menos disposta a entrar em contato com suas angústias.

Ela estava, provavelmente, novamente recolhida em sua cápsula narcísica na tentativa de elaborar este rompimento. Entretanto, agora com melhores condições de poder retornar à superfície com vida. Considerações Finais O CAPS enquanto equipamento de saúde mental multidisciplinar e lugar de cuidado que oportunizou a integração dos atendimentos destacados aqui com demais atividades terapêuticas grupais, compondo todo o projeto terapêutico da paciente. A união e a proximidade entre a equipe de referência e principalmente o profissional de referência com a atividade psicoterapêutica foi extremamente importante para que se conseguisse pensar em cada momento qual seria o melhor manejo institucional. No término da psicoterapia, por exemplo, foi possível deixar a mensagem da importância em possibilitar que Clarice vivesse novos papéis, inclusive dentro do equipamento de saúde mental, que pudesse viver e criar além do que estava acostumada, conforme suas possibilidades e conforme seus desejos que agora também se ampliavam. Foi possível pontuar a compreensão de que seria igualmente importante que a paciente continuasse seu processo psicoterápico, continuasse o processo de elaboração dos lutos e CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 53 conflitos a partir da relação transferencial, internalizando o bom a partir do vínculo, do cuidado, complementando a majestosa arte que a transdisciplinaridade entre os saberes torna possível, durante um maior período de tempo.

Em um âmbito particular ao autor, esta experiência foi de fundamental importância profissional. Uma oportunidade que muito além de proporcionar o início para o aperfeiçoamento da técnica psicoterápica e compreensão mais a fundo das políticas públicas em Saúde Mental, proporcionou a chance em vivenciar um vínculo terapêutico mais profundo dentro de uma instituição, integrando teoria, prática e a sutileza necessária para o acolhimento a tal demanda. Na integração entre a transferência e a contratransferência, entre o que analisa e o que é analisado, propondo o acolhimento da subjetividade também do que se dispõe a compreender as paixões humanas. As pretensões deste trabalho não se baseiam em propor um modelo único para a intervenção psicanalítica ou psicoterápica em instituições de Saúde Mental.

Pelo contrário, a proposta é de apresentar possibilidades a partir desta experiência e talvez motivar para que, como ocorrido nesta ocasião, junto ao crescimento individual, técnico e teórico de uma prática profissional subjetiva amparada pela clínica psicanalítica, aconteça demais articulações de manejo referenciado às políticas públicas em Atenção Psicossocial, possibilitando a complementação, ampliação e avanço à atenção integral e humanizada ao usuário de serviços da Rede de Saúde Mental e Atenção Psicossocial, fazendo do melhor uso possível de cada técnica disponível e além da preocupação com um processo de cura, possibilitar a escuta de um sujeito do inconsciente, psíquico, biológico, social, histórico e o mais importante, um sujeito do desejo, com possibilidades para ressignificação de seus sintomas a partir da relação humana com um Outro.

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