|  | Como lidar com a loucura?
 Essa pergunta não é nova. Ela atravessa a história de nossa civilização, e até os
 dias atuais nenhuma resposta de consenso foi alcançada.
 Mais recentemente, há cerca de vinte ou trinta anos, vem tomando corpo no
 Brasil um movimento social que milita pela desinstitucionalização do paciente
 psiquiátrico. Esse movimento não é uma criação nossa, tendo raízes em propostas
 similares que, em graus variados, provocaram mudanças não negligenciáveis na maneira
 de se encarar a questão da saúde mental em alguns países, como por exemplo a Itália.
 No nosso país aprendemos a chamar esse movimento por "Reforma
 Psiquiátrica".
 
 Mas do que realmente ele se trata? Qual a idéia central que norteia sua direção?
 No segundo semestre do ano de 2002 foi realizado um congresso em Belo
 Horizonte, promovido pela Associação Psiquiátrica de Minas Gerais, cujo tema era
 exatamente a reforma psiquiátrica. Durante esse evento, em meio às inúmeras plenárias
 e conferências, por duas ou três vezes pôde-se escutar uma frase que, apesar de
 aparentemente ter passado despercebida, talvez fosse interessante destacá-la: "É
 necessário incluir a exclusão".
 
 Se nos fosse solicitado definir rapidamente o que seria a reforma psiquiátrica,
 talvez essa frase se mostrasse como uma daquelas que melhor representaria a idéia
 central do que está em jogo nesse movimento.
 Caracteristicamente a história da civilização ocidental se orientou no sentido de
 excluir aquilo que se exclui do discurso vigente.
 
 Os loucos (ou os que se excluem) foram segregados, trancados em instituições,
 retirados do campo de visão, tratados como se não existissem.
 Essa tendência para a exclusão da exclusão, típica na civilização ocidental, está
 em consonância com a perspectiva de uma cultura baseada no conceito e,
 principalmente nos últimos séculos, centrada na razão.
 Vamos explorar um pouco mais esse termo de "exclusão". Excluído de que?
 Segundo a psicanálise, nós somos seres de linguagem. E na linguagem, naquilo
 que ela pode nomear ou discernir, existe alguma coisa que excede, que escapa à
 capacidade discriminatória da língua. Existe algo que escapa ao simbólico, que ele não
 consegue dar conta.
 
 Esse excesso de natureza quantitativa, inapreensível pela razão, sempre
 incomodou ao homem racionalista, ao homem do conceito. Ele via-se naturalmente
 impelido a decodificar, explicar o excesso, ou seja, impelido a eliminá-lo, absorvê-lo
 nas malhas da razão.
 
 Isso que se exclui do discurso racional coloca em xeque os alicerces da própria
 razão.
 Se a razão e o conceito se baseiam no estabelecimento de balizamentos
 universais, o excesso, ao se excluir da malha racional, coloca em suspensão qualquer
 pretensão ao saber. Uma verdade universal que tivesse o poder de tudo explicar, sem
 deixar restos, cairia por terra.
 
 O louco é um resto. Ele se exclui do discurso. Ele não se encaixa.
 O louco, então, é perigoso. O discurso universal tem medo da loucura.
 
 Em um texto de 1921, Psicologia das massas e análise do eu, Freud diz que as
 organizações grupais têm a tendência a rejeitar tudo aquilo que se coloca como diferente
 (FREUD, 1921/1969). O que não se encaixa é mau, feio, deve ser combatido e, de
 preferência, deixar de existir. O grupo, inclusive, se constitui como tal a partir, e tendo
 como referência, esse diferente, que passa a ser identificado como "fora", em oposição
 ao que é identificado como "dentro". Ou seja, o grupo se constitui a partir da exclusão
 de algo. O estabelecimento de limites exige a postulação de algo que exista fora, que se
 exclua, servindo como referência de oposição a aquilo que passará a ser identificado
 como o semelhante que caracterizará o que pertence ao dentro.
 Duas questões podem então ser colocadas:
 
 (1) Isso que é excluído, possibilitando com sua exclusão a constituição do grupo,
 pode deixar de existir sem comprometer com seu desaparecimento aquilo que ele
 constituiu ao se excluir?
 
 (2) E, se chegarmos à conclusão que a persistência de sua existência enquanto
 exclusão é necessária, esta existência deve ser realmente entendida como estando do
 lado de fora? Até que ponto o "fora" e o "dentro" podem ser estabelecidos com
 precisão?
 
 No final do século XIX, ao se debruçar sobre a hipnose, Freud talvez tenha se
 deparado com questões semelhantes. Ele rapidamente percebeu que, com a utilização da
 sugestão hipnótica, mesmo quando conseguimos eliminar a manifestação sintomática, que era aquilo que se almejava excluir, esse resultado imediato por si só não garantia o
 sucesso do tratamento. O sintoma tendia a retornar no futuro, com igual ou nova
 roupagem, e com igual ou maior intensidade. Freud, nesse momento, deu-se conta de
 que não bastava excluir o sintoma do campo das manifestações psíquicas. Era
 necessário que o paciente, conscientemente, o apreendesse com seu próprio discurso e,
 principalmente, o reconhecesse como sendo seu. Isso levou-o inicialmente a tentar
 associar à hipnose a ab-reação e, posteriormente, a abandonar ambos os métodos,
 criando a associação livre e, com ela, o método psicanalítico.
 
 O sintoma, não se trata de excluí-lo, mas de reinseri-lo na linguagem, de dar a
 ele um valor significante (por mais impossível que seja levar essa tarefa até seu termo).
 Isso nos leva a pensar, e a psicanálise assim o defende, que este excesso que se
 mantém irredutivelmente em exclusão, é parte necessária e constitutiva do próprio
 discurso do qual se exclui.
 Vamos desenvolver um pouco mais essa discussão.
 
 TIPOS DE PENSAMENTO
 
 Segundo Alain Badiou (BADIOU, 1996), existem três grandes orientações de
 pensamento, determinadas por uma pré-decisão, que na realidade tratam-se de três
 maneiras distintas de tentar resolver o problema do excesso quantitativo. Elas seriam as
 orientações de pensamento transcendente, construtivista e genérico.
 
 O primeiro, o pensamento de orientação transcendente, se caracteriza pela
 pressuposição de um ente supremo, uma potência transcendente, que parametrizaria
 com sua lei universal tudo que estivesse abaixo dele. Esse ente supremo teria sob seu
 jugo, e sob sua lei, todo o excesso que tanto incomoda. Um bom exemplo de
 funcionamento desse tipo de pensamento seria a religião.
 
 A segunda forma, o pensamento de orientação construtivista, baseia-se na
 rejeição do excesso. Aqueles que estão mergulhados no universo construtivista partem
 do pressuposto de que o excesso não existe. Tudo pode ser dito, nomeado, explicado.
 Não existe nada que não possa ser, cedo ou tarde, apreendido pelo saber.
 
 Quem pensa assim é a ciência. De acordo com ela, tudo pode ser harmonizado
 com a linguagem. A lógica do real corresponde à lógica da linguagem, e o que não pode ser apreendido pela linguagem, simplesmente não existe. O construtivismo trabalha
 apenas no já estabelecido, protegendo o sentido de qualquer coisa que o ameace. E a
 partir do momento em que estamos dentro do universo construtível, seus enunciados são
 irrefutáveis. Quem habita esse universo não aceita enunciados que coloquem em xeque
 o saber. O que não faz sentido, não existe. Os habitantes desse universo somente
 passarão a aceitar um enunciado anômalo se conseguirmos explicar-lhes sua
 veridicidade, isto é, se conseguirmos vinculá-lo ao saber, o que fará com que ele deixe
 de ser anômalo. Nesse universo, o ideal, o que se busca, é que nada seja indecidível.
 Uma terceira forma de se lidar com o excesso, o pensamento que Badiou
 chamou de orientação genérica (onde situaríamos a psicanálise e o marxismo), nem
 jogaria o excesso para o campo da transcendência (Deus, religião), nem rejeitaria sua
 existência (ciência), mas afirmaria que o excesso não apenas existe (indo contra a
 ciência), como é imanente à própria situação (e não transcendente, como diz a religião).
 
 O excesso aqui torna-se constitutivo do campo. Toda e qualquer situação se
 constitui a partir de um excesso, de um irrepresentável que insiste em se fazer presente.
 Essa orientação de pensamento, então, estabelece ao excesso um lugar
 fundamental no campo do saber e na civilização. Segundo ela, toda a subjetividade
 humana tem como ponto de arrimo algo estranho à malha de significantes que sustenta
 aquela subjetividade.
 
 A orientação de pensamento genérico inclui a exclusão.
 Mas trata-se de uma inclusão que é o oposto da assimilação. O objetivo aqui não
 é eliminar o excesso, escondendo-o intramuros ou assimilando-o. Trata-se de incluí-lo,
 deixando-o viver enquanto diferença, ou enquanto resto irredutível ao campo do saber.
 Essa orientação de pensamento não é apaziguante. O saber universal, sem
 excessos, acalma, tranquiliza, nos dá um solo seguro de apoio. Quando o excesso é
 incluído, e deixado vivo, ele incomoda, determina efeitos, provoca movimentos que
 buscam a adaptação (eliminação desse excesso) e a tranquilidade que essa adaptação
 traz consigo. Tranquilidade esta que nunca vai ser alcançada enquanto o que se exclui
 permanecer ali vivo.
 
 As civilizações, de um modo geral, na busca da segurança do instituído, têm a
 tendência a se pautarem sempre na tentativa de excluir aquilo que se exclui. Os
 manicômios vieram ocupar esta função. A loucura foi cercada, escondida dentro de muros, como se não existisse. Ela, então, consolidou-se como sintoma. Um sintoma que
 deveria ficar escondido, debaixo do pano, sem ninguém ver.
 
 Os manicômios tornaram-se um dos sintomas da civilização. Um sintoma
 abafado, silenciado, mas nem por isso não ativo.
 É aí que a reforma psiquiátrica se propõe a atuar.
 
 O manicômio tem que ser de portas abertas, não apenas para o louco poder sair,
 mas, principalmente, para que a sociedade possa entrar.
 É necessário incluir a exclusão. Incluir, não assimilar. Não se trata de eliminar o
 sintoma (tarefa impossível), mas de aprender a conviver, reconhecendo seu lugar,
 afetando e sendo afetado por ele. Aquilo que se apresenta como exclusão é uma parte
 necessária da situação. A diferença irredutível, inassimilável, é constitutiva da cultura
 (ou da civilização, já que Freud não as diferenciava) (FREUD, 1930/1969).
 O trabalho da reforma psiquiátrica tem então algo de impossível. Ela visa
 colocar uma impossibilidade em circulação, isto é, ela visa incluir aquilo que só existe
 enquanto exclusão.
 
 Criar mecanismos institucionais que viabilizem a existência do louco na
 sociedade, nas ruas, no seio das famílias, não é algo fácil de ser feito. A tendência
 natural é a tentativa de assimilação. Mas o louco não se deixa assimilar. Ele persiste
 enquanto incômodo. Ele é irredutível neste ponto.
 Existem também as questões jurídicas. Como incluir sob o guarda-chuva legal aquilo
 que por princípio se exclui? Antes era simples. Aquilo que não se podia explicar, que as
 leis não davam conta, era colocado intramuros, e o problema estava resolvido.
 
 Mas a partir do momento em que nos dispomos a dar cidadania à exclusão, as
 questões jurídicas tornam-se espinhosas. Como dar conta daquilo que se mantém
 irredutivelmente estranho às leis estabelecidas como universais?
 Louis Althusser, em sua última obra, autobiográfica (ALTHUSSER, 1992), feita
 durante internação em um hospício após haver matado sua esposa, não se defende da
 acusação de assassinato, não se diz inocente. Mas o que ele clama é pela liberdade de
 ser julgado e condenado. Ele quer passar por um julgamento. A pior coisa que poderia
 ter lhe acontecido, aos seus olhos, foi ter sido considerado louco, trancafiado em um
 hospício, e perdido até mesmo o direito de ser julgado e de pagar por seus atos. Ao considerá-lo louco, a sociedade usurpou sua cidadania, o seu livre arbítrio enquanto
 sujeito. E isso ele morreu, preso em um manicômio, sem perdoar jamais.
 
 O que a reforma se propõe é dizer que o louco também é sujeito, e por
 conseguinte responsável por seus atos. Mas como viabilizar isso? Como dar cidadania
 àquele que se exclui do guarda-chuva legal? É necessário então repensar as leis, e uma
 difícil negociação dos limites legais daquilo que não se deixa assimilar se impõe.
 
 Outra dificuldade que vem se impondo à medida que a reforma começa a
 viabilizar-se institucionalmente é o estabelecimento do perfil de profissional que se
 deseja. No modelo antigo, de exclusão da exclusão, esse problema não se colocava
 como algo importante. O profissional de saúde mental pouca importância tinha para a
 sociedade, já que a loucura ficava confinada, longe da polis. Mas a partir do momento
 em que a loucura ganhou as ruas, como tratar, como possibilitar uma mínima
 socialização para esses pacientes? E qual profissional torna-se necessário formar?
 Se com a reforma a sociedade não vai mais poder recuar frente à loucura, ela vai
 ter então que aprender a lidar com esta. Vai ter que criar mecanismos institucionais que
 sejam eficazes de lidar com o louco, agora cidadão, e vai ter que gabaritar técnicos
 (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, etc) que estejam aptos a
 lidar com essa tarefa. Tarefa esta que exige não apenas o tratamento do louco, mas
 também intervenções na sociedade, viabilizando espaços que permitam aos pacientes se
 movimentarem na teia social.
 
 Essa dupla função terapêutica, do louco e da sociedade, frequentemente cria uma
 falsa oposição entre uma vertente clínica e uma política entre os militantes da reforma.
 Mas essa oposição, ou esse suposto antagonismo, não necessariamente é verdadeiro.
 Como acabamos de dizer, ambas as vertentes têm algo em comum. Elas transitam pelo
 mesmo espaço, que é aquele da terapêutica. Tanto é necessário tratar o doente mental,
 retirando-o de sua crise e dando-lhe condições mínimas de funcionamento no registro da
 linguagem, como também é de fundamental importância tratar a sociedade, permitindo
 que sua exclusão constitutiva permaneça viva, de forma imantente, produzindo efeitos e
 causando transformações.
 
 Em termos psicanalíticos, qualquer "terapêutica", seja do indivíduo ou do
 coletivo, tem como objetivo resgatar o sujeito, o que só pode ser conseguido por meio
 do resgaste daquilo que possibilita a inscrição, de forma imanente, do excesso e seus avatares. O sujeito vive sob a égide de uma singularidade que, segundo Badiou, nada
 mais é do que a colocação em circulação de um significante anômalo (BADIOU, 1996),
 não absorvível pelo discurso universal, já que carrearia consigo um excesso que se
 exclui ao saber.
 
 Um sujeito só pode ser entendido em movimento, no processo de busca de uma
 significação que não se completa nunca. O sujeito é marcado, ou causado, por uma falta
 de saber. Essa falta de saber está na constituição da singularidade que o define.
 Seja a nível individual, seja a nível coletivo, a clínica que se busca é aquela que
 vai resgatar o sujeito, colocando o excesso, de forma imanente, em circulação.
 
 A reforma, nesse sentido, não é consequência de uma demanda direta feita pelos
 indivíduos socialmente marcados pela loucura. Estes a sociedade mostrou-se eficiente
 em silenciar. A reforma veio como uma demanda da própria sociedade, que a partir de
 um dado momento começou a não conseguir mais esconder de si mesma alguns de seus
 grandes sintomas. Os manicômios, enquanto depositários da loucura, mostraram-se ser
 um desses sintomas. Se não podemos eliminá-los, o que fazer com eles?
 É a essa pergunta que a reforma psiquiátrica foi convocada como tentativa de
 resposta.
 
 Para finalizar, retomemos então a frase (sob a forma de questão) que é a base
 deste texto, e que talvez possa representar uma boa síntese de toda a problemática da
 reforma: "Como fazer, como viabilizar, a inclusão da exclusão?".
 Referências BibliográficasALTHUSSER, L. (1992). O futuro dura muito tempo. São Paulo: Companhia das Letras.
 
 BADIOU, A. (1996). O ser e o evento. Rio: Jorge Zahar.
 
 FREUD, S. (1921/1969). Psicologia das massas e análise do eu. Em Edição standart brasileira (vol.
                            XVIII, pp. 79-154). Rio: Imago.
 
 FREUD, S. (1930/1969). O mal-estar na civilização. Em Edição standart brasileira (vol. XXI, pp. 67-
                            148). Rio: Imago.
 Recebido em Julho de 2011Aceito em Agosto de 2011
 
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