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Introdução
Este trabalho tem como objetivos ressaltar o papel basilar do vínculo e da
responsabilização no tratamento do portador de sofrimento mental, empregando a noção de
transferência elaborada pela psicanálise. Assim como refletir sobre a eficácia do projeto
terapêutico individual nos serviços de saúde mental. Discutir a importância da articulação da
rede de atenção à saúde mental ao portador de sofrimento mental e refletir sobre o lugar do
hospital psiquiátrico na contemporaneidade. Visando demonstrar as articulações dessas
variadas facetas, apresentaremos um caso clínico e o percurso do tratamento, destacando as
intervenções realizadas pela rede assistencial que acolheu o caso.
A transferência é considerada a princípio por Freud (1912) como verdadeiro motor do
tratamento analítico, mesmo quando se apresenta como resistência. É o processo pelo qual os
desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos, no tipo de relação estabelecida
com eles e, eminentemente, na relação analítica. Para Figueiredo (2009), a transferência se
define como um modo particular de vínculo do sujeito seja com o profissional ou com a
instituição. É um conceito central para a clínica e deve ser considerado em suas diferentes
manifestações como uma estratégia do sujeito que dá suporte e condiciona seu tratamento. O
manejo da transferência é a parte vital do tratamento analítico e também na condução do
tratamento e construção do projeto terapêutico em saúde mental.
O projeto terapêutico individual (PTI) é um recurso que pretende focalizar e direcionar
a equipe no tratamento do sujeito. Freqüentemente utilizado no campo da saúde mental
pública, o PTI propicia voz ativa e implica o sujeito na construção de laços sociais, inclusão
social e ressocialização, sem abandono ou exclusão. O projeto visa garantir o sujeito
atendimentos individuais, co- responsabilidade quanto à definição da freqüência aos serviços
de saúde e os encaminhamentos necessários a sua especificidade. Carece ter um técnico de
referência que possua capacidade técnica e articule o trabalho em equipe, aceitando sugestões
e observações pertinentes ao caso. As intervenções propostas pelo técnico de referência e pela
equipe ocorrem em consonância com a singularidade do sujeito (MINAS GERAIS, 2007).
As redes de atenção à saúde mental devem ser compostas dos mais variados
dispositivos encontrados na comunidade. A organização acontece com objetivo de melhoria
da integralidade da saúde da população, onde o sujeito é co-responsável e participante de
forma ativa no seu processo terapêutico. Ademais, a ênfase no cuidado ocorre na relação entre
equipes multiprofissionais, usuários e suas famílias (MINAS GERAIS, 2009). A rede tece e
possibilita um acontecimento novo na cultura, que é a inclusão da loucura na cidade e na
cidadania. Na sustentação desta idéia e desta prática destaca-se, viva e nitidamente, o desejo decidido dos trabalhadores de saúde mental que emprestam seus corpos para endereçarem e
referenciarem os possíveis percursos dos portadores de sofrimento mental. Há um desejo do
fazer diferente que acompanha a pratica e atenção daqueles que necessitam de tratamento
(BELO HORIZONTE, 2008).
Assim sendo, o desígnio deste trabalho é discutir e refletir sobre essas ferramentas no
atendimento ao portador de sofrimento mental, frente ao caso apresentado, destacando a
importância da transferência no tratamento.
Construindo um caso
Trata-se de Mateus (nome fictício), dezenove anos, solteiro, reside na região
metropolitana de Belo Horizonte juntamente com a mãe, e dois irmãos. Estudou até a sexta
série do ensino fundamental, abandonou a escola porque tinha dificuldade de se expressar e
comunicar com os colegas e professores. Recusava fazer as tarefas propostas pela professora,
era sempre nervoso, tímido, arredio e calado. Saia da escola e brigava com os irmãos quando
chegava em casa. Nunca trabalhou, fez apenas um biscate de segurança numa festa da sua
cidade. Ao relatar o fato, sente-se orgulhoso por tal experiência. Envolveu-se apenas em um
namoro de curta duração.
Seu pai fazia tratamento psiquiátrico de forma irregular, não mantinha adesão a
nenhuma terapêutica. Além disso, era etilista, tabagista e cardíaco, vindo a falecer de Doença
de Chagas há aproximadamente oito anos. Mateus sente-se culpado pela morte do pai, pois os
dois sempre entravam em atrito, e o desfecho se dava com recíprocas agressões físicas e
verbais. A mãe de Mateus afirma que o marido era agressivo, bebia, batia nela e nos filhos. O
irmão mais velho, atualmente faz acompanhamento psiquiátrico, toma regularmente
antidepressivo, trabalha formalmente e vive estável. A mãe nega que tem transtornos
psíquicos, porém afirma que há casos de depressão grave em sua família. O padrasto de
Mateus é psicótico, faz tratamento e encontra-se estável há alguns anos.
Mateus faz uso de etílicos desde os quatorze anos, é tabagista, nega o uso de drogas
ilícitas. Mesmo consciente das graves conseqüências sociais, familiares, econômicas e
orgânicas que álcool pode provocar, o paciente não consegue deixar a bebida. Relata que se
sente aliviado e desinibido quando faz uso de álcool. Contudo, afirma que sente uma profunda
tristeza e culpabilidade após ingerir a bebida.
Em certas ocasiões apresentou episódio de tricotilomania e atualmente só anda com
uma faca na mão, "para se proteger", segundo ele mesmo diz. Afirma ter nervosismo, insônia,
vergonha, timidez e medo das pessoas. Em menos de um ano apresentou várias tentativas de auto-extermínio, quatro passagens em internações psiquiátricas, e tentativas frustradas de
adesão ao tratamento proposto pelo Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS
AD), da cidade vizinha. Mateus começou o tratamento psiquiátrico neste serviço há
aproximadamente 01 ano.
Percurso terapêutico: um ensaio para o enlaço do tratamento
Em sua primeira passagem pelo hospital psiquiátrico aos dezoito anos de idade,
Mateus apresentava quadro de impregnação neuroléptica, auto agressividade, nervosismo e
relato de alucinações visuais. Foi avaliado pelo plantão, medicado conforme o quadro
apresentado e liberado na mesma data para tratamento ambulatorial.
Após cinco meses, Mateus retorna ao mesmo hospital com encaminhamento da
policlínica de sua cidade, com relato de três tentativas de auto-extermínio nos últimos 20 dias,
sendo a última precedida de enforcamento e ingestão de grande quantidade de medicamentos.
Ingeriu os remédios prescritos pelo CAPS AD, juntamente.comprimidos analgésicos e
vermífugos para cães, os quais estavam em sua casa. Na policlínica recebeu os cuidados
médicos de urgência e posteriormente foi encaminhado para o hospital psiquiátrico. No
acolhimento apresentava-se emagrecido, agitado, consciência clara, agressivo, inquieto e
hostil ao contato. Foi medicado conforme o quadro de agitação psicomotora. Segundo relato
da mãe, fazia dois dias que Mateus se recusava a tomar banho, chorava muito e reclamava da
falta do pai falecido há sete anos. Na abordagem, o paciente diz "eu vim para o hospital
porque fiquei nervoso com meu irmão porque ele trancou minha bicicleta, aí peguei uma
telha e joguei nele, ele pegou e me bateu na cabeça com a telha". Permaneceu por dois dias
em observação no hospital e saiu re-encaminhado para o CAPS AD. De acordo com o
psiquiatra que o atendeu, Mateus encontrava-se em condições de alta, pois estava lúcido,
orientado no tempo e espaço, cooperativo, sem sintomas produtivos ou qualquer sinal que
indicasse um quadro psicótico. Queixava apenas de timidez e uso abusivo de álcool. Apesar
dessa observação, o paciente obteve uma hipótese diagnóstica de depressão bipolar e psicose
não especificada- a esclarecer.
Passados três meses após a alta, Mateus retorna ao hospital psiquiátrico, trazido por
sua mãe, com relato de alterações de humor e comportamento. No acolhimento o psiquiatra
descreve: tranqüilo, cooperativo, algo entristecido, discreto hálito etílico, alerta, consciência
clara, pensamento organizado, idéias de menor valia, senso-percepção sem alteração, discreta
lipotimia. A mãe relata que Mateus ficou agitado e agressivo, ameaçou os familiares. Ao ser
indagado, paciente diz: "a bebida me dá animo e facilita o contato social, além disso, eu bebo porque eu matei meu pai" . Durante a estadia no hospital, foram realizadas investigações de
doenças clínicas, inclusive avaliação endocrinológica devido a suspeita de atraso de
desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, porém, não foi detectada nenhuma
alteração. Mateus ficou em observação três dias no leito crise do hospital, não chegando a ser
internado na ala. É re-encaminhado ao CAPS AD com novas impressões diagnósticas:
síndrome de dependência alcoólica; fobias sociais; transtorno de personalidade paranóica;
transtorno do humor afetivo não especificado; transtorno depressivo recorrente, episódio atual
leve. Alkimim (2008) ressalta que "a pulverização dos sintomas e o esfacelamento das
categorias diagnósticas tradicionais da psiquiatria clássica, produzem tal multiplicação e
universalização dos critérios diagnósticos, fazendo deles uma banalização".
Diante de um quadro de sofrimento mental com difícil manejo da adesão ao
tratamento e diferentes hipóteses diagnósticas, torna-se evidente a necessidade de uma
articulação maior entre as redes assistenciais e a equipe que o acompanha. Perante tal
situação, a médica psiquiatra que atende na policlínica da cidade de Mateus e no hospital
psiquiátrico como plantonista, resolve intervir e decide por acompanhar o caso de forma mais
articulada. Propõe, então, atendê-lo na policlínica uma vez por semana, pois o CAPS AD que
Mateus freqüentava não era na sua cidade. Assim, a psiquiatra criou um vínculo terapêutico
com Mateus, e o mesmo com a profissional e a policlínica. Articula-se uma rede assistencial
onde Mateus passa a circular na Policlínica, no Programa de Saúde da Família (PSF) da sua
cidade, além do CAPS AD do município vizinho.
No entanto, passados 46 dias, Mateus novamente apresenta tentativa de autoextermínio
na qual ingeriu aproximadamente 30 comprimidos de sulfato ferroso que estavam
em uma caixa de benzodiazepínicos. Foi à policlínica, onde foram realizados todos os
procedimentos médicos de urgência. Após a tentativa de auto-extermínio, a psiquiatra da
policlínica, o psicólogo do CAPS AD e a equipe do PSF, discutem o caso e propõem a
internação no hospital psiquiátrico com o objetivo de preservar a integridade do paciente. A
psiquiatra faz um contato prévio com o médico que acompanharia Mateus durante sua
internação. Agora inclui-se o hospital psiquiátrico na rede assistencial e não mais só no
atendimento a crise, visto a complexidade do caso e a dificuldade na adesão ao tratamento,
propondo um acompanhamento mais sistematizado, reforçando seu vinculo aos serviços.
As redes de atenção à saúde mental são compostas por diferentes ações e serviços. No
entanto, para articular como rede, é necessária a sua ordenação a partir de um Projeto de
Saúde Mental. Esse projeto abrange uma construção coletiva envolvendo como parceiros o
poder público, trabalhadores, usuários, os centros de convivência, os grupos de produção, as moradias assistidas, respeitando as especificidades de cada município. O projeto não se
restringe apenas na criação e substituição de novos serviços, ele é pautado na vinculação do
paciente a determinados serviços, conforme sua singularidade. No caso de Mateus, não havia
no seu município de referencia um dispositivo de maior proteção, sendo necessário lançar
mão do recurso fora da comunidade onde ele vivia, necessitando, assim, a inclusão do hospital
psiquiátrico (MINAS GERAIS, 2007).
Chegando ao hospital psiquiátrico, Mateus é atendido e acolhido pela médica que o
acompanhava na policlínica e estava como plantonista no hospital. Ao acolhê-lo, descreve:
"Acompanho Mateus na policlínica de sua cidade há 06 meses, trata-se de paciente com atos
obsessivos, não sai de casa senão na companhia da mãe, cisma que vai morrer, ou que tem
coisas andando ou puxando sua coberta a noite. Tem medo do escuro mesmo dormindo com a
luz acesa. Sente-se vergonhoso, por isto abandonou a escola, diz-se bastante tímido. Está
calmo, lúcido, com medo da internação hospitalar. No momento não observo atividade
delirante alucinatória. Oriento o paciente e a família sobre o processo de internação e o perfil
do médico que irá acompanhá-lo durante a estadia no hospital".
Mateus agora ficou internado por 15 dias, teve alta tranquilo, com humor estabilizado.
Paciente e sua mãe foram orientados pelo médico que acompanhou o caso sobre a importância
de continuidade do tratamento em sua cidade, e a gravidade da sua doença. Novamente saiu
com variadas hipóteses diagnósticas: transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de
álcool; transtorno de personalidade com instabilidade emocional; mania com sintomas
psicóticos; outros transtornos depressivos recorrentes.
O papel do hospital psiquiátrico no caso Mateus
Antes de trabalharmos a relação do hospital no caso Mateus, faremos uma breve
passagem pelo papel do hospital psiquiátrico no mundo contemporâneo. De acordo com as
novas legislações da reforma psiquiátrica brasileira, o hospital psiquiátrico deixa de ser o foco
de tratamento dos portadores de sofrimento psíquico. As novas formas de lidar com a loucura
incluem a substituição do hospital psiquiátrico pelas redes de atenção à saúde e a inclusão de
ações e alternativas de atendimento na comunidade. Entretanto, é evidente a insuficiência de
serviços de saúde mental em quantidade e qualidade, além da desarticulação da rede de
serviços já existentes. Tal situação traz inúmeras conseqüências aos portadores de sofrimento
mental e com isso, o paciente tem dificuldades em criar vínculos com os serviços e com os
profissionais da rede de atenção. Mateus, por exemplo, estabeleceu seu vínculo com a psiquiatra na policlínica de sua
cidade. Não necessariamente um serviço para acolher o portador de sofrimento mental careça
ser um serviço de saúde mental. A postura ética dos profissionais que conduzem o caso e a
disponibilidade para investir na acolhida são essenciais para qualquer PTI.
Atualmente o hospital psiquiátrico tem como papel fundamental acolher e tratar a
clientela portadora de transtorno mental em situação de crise, respeitando as diretrizes da
reforma psiquiátrica. Possibilitando o enlace e a continuidade de tratamento na rede de
atenção à saúde mental, constituindo-se em um serviço humanizado e de qualidade técnica,
integrado na rede de atenção à saúde mental. Além disso, deve acolher casos de interdição
judiciária e propor o tempo mínimo de permanência para o atendimento a crise e estabilização
do sofrimento psíquico.
Em relação a Mateus, o hospital foi fundamental para acolhê-lo durante a crise,
preservando a sua integridade física, devido às tentativas de auto-extermínio que vinham
acontecendo. Mesmo sendo realizado um trabalho sistemático entre a Policlínica, o CAPS AD
e o PSF, foi necessária a inclusão do hospital psiquiátrico na rede de atenção à saúde que
acolhia Mateus. Ademais, através da construção do PTI, enlaçado pelo estabelecimento da
transferência do paciente com a médica da policlínica, com o técnico de referência do CAPS
AD e o enfermeiro do hospital psiquiátrico, foi possível mostrar a Mateus novas estratégias e
formas de lidar com o sofrimento psíquico.
Apesar de estar no hospital psiquiátrico, a equipe que acolheu Mateus focou a
construção do caso respeitando a sua singularidade. O respeito à singularidade do sujeito deve
ser primordial nas ações em saúde mental, uma vez que a historia do individuo é única, assim
como o seu jeito de ser, suas questões subjetivas, familiares e sociais, suas dificuldades e seus
projetos. As hipóteses diagnósticas podem ser as mesmas, porém as pessoas são únicas e
como tais, devem ser respeitadas e tratadas em sua diferença (MINAS GERAIS, 2007).
A internação, o Projeto Terapêutico Individual, o vínculo e a reinserção na rede
de atenção à saúde: o papel da enfermagem.
Durante a internação, o Projeto Terapêutico Individual (PTI), foi de responsabilidade
da enfermagem do hospital psiquiátrico. Esse projeto é divido por leitos e realizado pelos
profissionais de nível superior da equipe (psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais,
terapeutas ocupacionais e médicos). Cada profissional tem três leitos pré-definidos na
internação, para realização do PTI. O projeto terapêutico indica para a equipe a direção que se
pretende dar ao tratamento, além de ter como princípio proporcionar ao paciente a retomada de voz e do poder de decisão sobre as questões que lhe concernem. Além disso, o profissional
responsável pelo PTI torna-se técnico da referencia do paciente, possibilitando a ele uma
escuta qualificada, a criação de um vinculo e acolhida à família do portador de sofrimento
mental (MINAS GERAIS, 2007). "É na família que afloram os determinantes do processo
saúde-doença, acrescidos dos fatores sociais, das lutas pela sobrevivência e da produção e
reprodução da força de trabalho" (ARAÚJO, 2002, p.85).
Schmith e Lima (2004) reforçam que o vínculo, muito além de responsabilização, vem
falar de uma relação mais personalizada, mais concreta entre trabalhador e usuário, na qual os
mesmos possam se conhecer, inclusive nominalmente. Além disso, o vínculo contempla a
participação ativa do usuário na organização do serviço e no tratamento.
Temos no conceito de transferência desenvolvido pela psicanálise o alicerce para a
relação com o sujeito e o tratamento, sendo este considerado por Isolan (2005) como: "o
conjunto de expectativas, crenças e respostas emocionais inconscientes que um paciente traz
para a relação terapêutica, baseadas nas experiências persistentes que teve durante sua vida
com outras figuras importantes do passado". Freud (1912), ao interrogar o que é a
transferência, diz:
"O que são as transferências? São reedições, reproduções de moções e fantasias que,
durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a
característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico.
Dito de outra maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não
como algo passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico".
(Freud – A Dinâmica da Transferência- 1912).
Nos primeiros dias de internação, Mateus permanecia sempre isolado, mais restrito ao
leito, com medo dos outros pacientes, não era sociável e se negava a participar de atividades
proposta pela equipe multidisciplinar. Apresentava algumas dificuldades em expressar o que
sentia e o que o angustiava. Inicialmente a maioria das informações que norteavam o
tratamento era fornecida pela mãe que visitava o filho todos os dias, ora no período da manhã,
ora no período da tarde. Às vezes o visitava em ambos os horários, quando acompanhado do
padrasto de Mateus.
Diante do comportamento arredio e a dificuldade de interação da equipe com o
paciente, perante as diversas hipóteses diagnosticas apresentadas durante a evolução do seu
quadro, tornou-se um desafio planejar o projeto terapêutico para Mateus.
Iniciamos colhendo as informações com a mãe do paciente e realizando contato nos
serviços onde Mateus já havia passado. Realizamos contato com o psicólogo e técnico de referência de Mateus no CAPS AD, fomos informados que o paciente é faltoso na
permanência dia e quando comparece é com a mãe e apresenta-se arredio, isolado, pouco
sociável, comportamento que se repetiu na internação. O psicólogo afirma que Mateus é um
paciente de difícil manejo e não tem adesão ao tratamento ambulatorial proposto pelo CAPS
AD. Vale ressaltar que este serviço não está localizado na cidade onde Mateus reside, o que
acreditamos ser um ponto relevante quando se pensa em vínculo e adesão.
Dessa forma, lançamos mão da vocação da enfermagem psiquiátrica, a qual é um
processo interpessoal que visa promover e manter uma mudança no padrão de comportamento
no paciente. Ela contribui para o seu funcionamento integrado podendo ser dirigida ao
individuo, à família e à comunidade. (OLIVEIRA, 2005).
O enfermeiro psiquiátrico realiza a ação pautada no entendimento de que o papel da
enfermagem é o de agente terapêutico, e o que sustenta essa prática é o relacionamento
terapêutico estabelecido com o paciente a partir da compreensão do significado do seu
comportamento. É uma ação caracterizada como espontânea, mas guiada eticamente pela não
indiferença, pela capacidade técnica e pelo vínculo. (GAIL, 2001). Para sustentar essa prática,
recorremos também à noção de transferência que nos orientou no vínculo com o paciente.
Segundo Viganò (2002) alguns pacientes criavam uma transferência com a estrutura do
hospital, pois a vida social podia ser perigosa, persecutória e o muro da instituição fazia esta
defesa. O autor defende que na atualidade a enfermagem é um dos agentes de transformação
da instituição e que a transferência com os enfermeiros ocorre como se fosse um muro vivo
para o paciente. A convivência o dia todo com o portador de sofrimento mental, criando
ocasiões para que o sujeito se expresse, pode funcionar como o ponto de referência para o
paciente, facilitando assim o processo de transferência.
A partir do convívio diário com Mateus no hospital psiquiátrico elaboramos os
aspectos clínicos a serem trabalhados durante a hospitalização. Isso facilitaria para nortear a
equipe ultidisciplinar sobre os cuidados a serem prestados para o paciente durante sua
internação. Principiamos demonstrando interesse e apoio a Mateus, através de uma escuta
diferenciada, respeitando seus limites e sua singularidade. Neste momento percebemos a
transferência do paciente com o enfermeiro responsável por seu PTI, ressaltando a
importância desse ponto para o tratamento de Mateus. Devido a aproximação e transferência
estabelecida com seu técnico de referencia, Mateus confessa que não gosta de fazer uso de
etílicos, sendo assim uma maneira indesejada de ser sociável e poder conversar com as
pessoas. Nos atendimentos, Mateus sente-se mais a vontade em expressar seus sentimentos e
faz alguns comentários importantes
"Fui uma criança retraída, não conseguia estabelecer vínculos na escola, eu ficava isolado e tinha dificuldade de me expressar com a minha
professora". Como notamos, Mateus tinha desde criança dificuldades nos relacionamentos,
comportamento esse evidenciado pela vulnerabilidade familiar. Em seu ambiente familiar
sempre ocorreram brigas, seu pai era violento com a esposa e filhos, dormia com uma faca
debaixo do travesseiro, conforme relatos de sua mãe. Mateus comenta: "Depois que meu pai
faleceu entrei em depressão profunda. Eu brigava muito com ele, ele era uma pessoa muito
brava, cobrava muito de mim, aí a gente brigava de dar pauladas, socos e pontapés".
Diante dessa escuta, introduzimos Mateus em atividades que desenvolvessem sua
segurança e confiança, com vista à recursos de reabilitação social, frente às informações
fornecidas por ele acerca de seus desejos e aptidões, tais como vontade em se tornar
segurança, gostar de música sertaneja, desejo de estabelecer vínculos de amizade. Assim há
melhora do bem estar subjetivo e objetivo e a reintegração na comunidade, ajudando na
percepção dos sucessos obtidos, demonstrando confiança no seu potencial, encorajando-o a
avaliar seu próprio comportamento, promovendo sua independência gradativa.
Mateus relata também sobre sua relação com bebida, "Quando bebo viro outra pessoa,
fico nervoso, agressivo e tento me matar. As vezes fico em casa ouvindo musicas sertanejas
antigas, fico lembrando do meu pai, aí tenho vontade de morrer". Trabalhamos com Mateus
sobre os malefícios do uso abusivo do álcool no organismo e os prejuízos pessoais, familiares,
socioeconômicos e, principalmente a perda de sua liberdade e a vivência de rejeição pelas
pessoas que lhes são significativas. Mateus mostra-se reflexivo e disposto a mudar seus
hábitos e sua postura em relação a bebida.
Durante a internação ressaltamos também a manutenção da integridade de Mateus,
protegendo-o devido a idéia de auto-extermínio. Seu leito permaneceu sempre próximo ao
posto de enfermagem, procedimento este utilizado para aumentar a vigilância quando temos
pacientes com risco de auto-extemínio, ponto este reforçado pelo discurso de Mateus durante
a internação: "Quando tentei auto extermínio essa ultima vez foi sem noção mesmo, tanto que
chamei minha mãe e disse que tava passando mal com os remédios".
Alguns dias antes da alta hospitalar, Mateus se mostrava mais comunicativo, sociável
com os outros pacientes, participou de atividades propostas pela equipe multidisciplinar,
estava com humor estável, preocupado com a aparência não usava roupas do hospital,
despertou o desejo de voltar a estudar e confessou que seu sonho era ser policial militar. Além
do plano terapêutico, do trabalho com a mãe do paciente, entramos em contato com o técnico
de referência do paciente no CAPS AD, para que Mateus pudesse sair da internação com
acolhimento agendado naquele serviço. Conversamos com a médica que o atendia na policlínica, discutimos o caso e acordamos que Mateus continuaria a ser acompanhado por ela
uma vez por semana no período da tarde. Nesse momento de transição do paciente
convidamos a médica para um atendimento ainda no hospital, junto à mãe e o técnico de
referência, reforçando sua transferência e seu vinculo ao tratamento ambulatorial e
implicando sua família no projeto terapêutico.
Mateus compareceu a consulta no CAPS AD, freqüentando a permanência dia por
algum tempo, acompanhado por sua mãe. Além disso, está indo semanalmente a policlínica,
sendo atendido pela médica psiquiátrica, como enlaço do tratamento ambulatorial.
Independente das diversas impressões diagnósticas de Mateus, percebemos a falta de um
enlace no tratamento do paciente que sempre batia à porta dos serviços em crise. Nosso papel
mais que acolhedor, foi o de atender a crise e reforçar o vinculo de Mateus a algum serviço
direcionando seu tratamento, criando- se assim uma rede assistencial mais efetiva e
comprometida com o caso.
Segundo a psiquiatra que o acompanha na policlínica, atualmente Mateus está menos
inibido, se trajando de forma mais adequada, auto-cuidado preservado, apresenta mais
autonomia na sua vida, fala de planos de trabalhar com música ou serviços de segurança.
Após intervenções realizadas pela equipe, Mateus modifica seu comportamento, agora mais
compromissado com as responsabilidades da vida. Atualmente não tem feito uso de etílicos.
Considerações Finais
O caso de Mateus evidencia a necessidade de refletir acerca da rede em saúde mental,
o papel e o lugar ocupado por seus dispositivos e pelos profissionais no acolhimento ao
paciente portador de sofrimento mental. O termo rede segundo Viganò (1999), disserta sobre
a idéia de que ``o sujeito possa ir de um lado a outro e funciona como um conjunto de trilhas
que permite as pessoas chegarem a pontos preestabelecidos a partir de seus sintomas.``
A proposta de atuação em rede pressupõe um trabalho baseado em relações horizontais
(SILVA, 2005), que deverá ser consubstanciado nas interlocuções realizadas por seus atores,
com uma nova lógica, que inclua capacitação profissional, envolvimento e utilização dos
diversos dispositivos disponíveis em uma comunidade, permitindo ao sujeito a posição de
operador dos seus desejos, orientando sua lógica de tratamento.
Temos ainda a referência proposta por Garcia (2002), que entende a rede para além do
circuito Saúde Mental em seu sentido estrito psiquiátrico. Com uma escuta diferenciada
buscamos inserir Mateus no circuito social utilizando um serviço de saúde, no território onde vive, com o qual se formou um vinculo com o paciente, utilizando da transferência
estabelecida com o profissional de referência para articulação da rede assistencial.
A partir dos atendimentos com Mateus, foi possível vivenciar a relação transferencial
e sua importância enquanto operador da clinica, norteando e direcionando todo o Projeto
Terapêutico desenvolvido com o sujeito em questão.
Assim este trabalho buscou demonstrar a importância dos dispositivos da clinica e a
implicação da rede de atenção à saúde na condução do caso clínico em saúde mental. Além
disso, foi possível vivenciar a imperiosa noção da transferência no tratamento analítico e seus
resultados no enlace do projeto terapêutico individual.
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Recebido em Julho de 2011
Aceito em Setembro de 2011
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