ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 11 Maio à Agosto de 2010
 
   
 
   
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  . O que existe de constante no autismo?  
 

WHAT'S CONSTANT IN AUTISM?

 
     
 

Jean – Claude Maleval

Doutor pela Universitè Paris 13,
Professor de Psicologia Clínica da Universitè Rennes 2 Haute Bretagne.

 

 
 

Conferência pronunciada na Escola Brasileira de Psicanálise, em Belo Horizonte /MG, no dia 10/05/10.

Tradução de Emilia Firmino

 

 
 

No autismo, segundo Asperger, “o essencial permanece invariável”, enquanto que, para Kanner, “a estrutura da personalidade fundamental” persiste. Contudo, as abordagens modernas dos comportamentos se encontram na incapacidade de isolar o que existe de constante num espectro do autismo do qual a extensão flutua à medida de definições arbitrárias. Uma abordagem psicanalítica estrutural, apoiada em testemunhos de autistas de alto desempenho, permite, no entanto, apreender além da diversidade dos quadros clínicos, duas características marcantes: uma retenção do objeto de gozo vocal, geradora de um tratamento original da linguagem, e um retorno do gozo numa borda, levando a dar um lugar privilegiado a seus três componentes:o objeto autístico, o duplo e a ilhota de competência.
Existiria uma estrutura autística? É a hipótese implícita de um dos mais finos clínicos do autismo. Existe uma constante desse tipo clínico, afirma Asperger. “A partir de dois anos, seus traços são reconhecíveis – eles persistem toda a vida. Claro que as capacidades intelectuais e de caráter se desenvolvem; existem traços que aparecem ou desaparecem ao longo do desenvolvimento e as dificuldades mudam. Mas o essencial continua invariável [...] É a unidade dos sintomas e sua constância que leva a esse estado tão típico1 [...] Os sintomas descritos não mostram nada de evolutivo, permanecendo estáveis durante toda a vida” 2.
1 Asperger H. Les psychopathes autistiques pendant l’enfance [1944], Les empêcheurs de tourner en rond. Synthélabo. Le Plessis-Robinson. 1998, p. 106. 2 Ibid., p. 110.
Então, se fazemos a hipótese de uma estrutura autística, como caracterizar o que fica constante? Para diferenciá-la, parece ser necessário lembrar-se de um ensinamento metodológico essencial dado por Freud e Lacan no estudo das psicoses. Lembremos que a IPA e os cognitivistas, consideram a psicose como uma derrota do pensamento, como uma falha do eu ou como um disfuncionamento cognitivo. A psicose que parece melhor responder a esse modelo é a esquizofrenia, de forma que ela foi o objeto de toda atenção deles e da maioria de seus estudos.

Freud e Lacan fazem ao contrário, a hipótese de que é partindo de formas mais elaboradas da defesa psicótica que podemos compreender as formas mais arcaicas. Freud e Lacan privilegiam a paranóia e as Memórias do Presidente Schreber para apreender a psicose. O estudo do esquizofrênico pouco esclarece o funcionamento do paranóico. Todavia, o paranóico permite sempre uma melhor compreensão do esquizofrênico, sobretudo quando, como Schreber, ele passou por uma fase esquizofrênica antes de elaborar uma paranóia.
Esta metodologia, que consiste de partir das formas mais altas da defesa, a fim de esclarecer posteriormente as formas mais simples, a de Freud e Lacan para o estudo da psicose, parece-me ser a mais heurística para o estudo do autismo. É o autismo de alto desempenho, e o de Asperger, que deve permitir iluminar novidades sobre o autismo de Kanner.

Ora, há uns vinte anos dispomos de alguns textos notáveis, produzidos por sujeitos de uma excepcional fineza na descrição de seus funcionamentos, de textos que são o equivalente para apreensão do autismo do que foram as Memórias de Schreber para a apreensão da paranóia.
Atualmente são numerosos os autistas de alto desempenho que escrevem. Vários entre eles parece-me se colocarem, pelos seus escritos, no nível de Schreber. Especialmente: Donna Williams, Temple Grandin, Birger Sellin, Daniel Tammet, ou, num grau inferior, Sean Barron, Annick Deshays e outros ainda (Jim Sinclair, Tito Mukhopadhyay, Joffrey Bouissac, etc).
Em certos meios, atualmente é moda considerar politicamente correto não falar mais de autismo, e sim unicamente de “pessoas com autismo”, sugerindo assim que o autismo seria uma doença parasitária erradicável. Não é a opinião dos principais interessados. Mesmo uma Temple Grandin, que concebe, portanto o autismo como uma doença genética, mesmo ela afirma: “se eu pudesse, num estalar de dedos, parar de ser autista, eu não o faria porque eu não seria mais eu mesma. Meu autismo integra o que eu sou ”3. Mesmo com seu sucesso 3 Grandin T. Penser en images. [1995] O. Jacob. Paris. 1997, p. 17. social, Williams não deixa de se considerar autista e testemunha da persistência do seu funcionamento original, mesmo que ele seja cada vez mais adaptado. Jim Sinclair, um autista americano de alto desempenho, é ainda mais explícito sobre esse ponto: “o autismo, escreve ele, não é alguma coisa que uma pessoa tem, ou uma “coquille” na qual uma pessoa está fechada. Não existe criança normal escondida atrás do autismo. O autismo é uma maneira de ser. Ele é invasivo; ele tinge toda experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção, todos os aspectos da vida. Não é possível separar o autismo da pessoa... e se isso fosse possível, a pessoa que ficaria não seria mais a mesma do início.

É importante, tomemos um momento para refletir sobre: o autismo é uma maneira de ser. Não é possível separar a pessoa do autismo.
Assim, quando os pais dizem, “eu gostaria que minha criança não tivesse mais autismo”, o que eles querem verdadeiramente dizer é: “eu gostaria que a criança autista que tenho não existisse, e tivesse uma criança diferente (não autista) no lugar” 4.
A leitura atenta dos textos de autistas parece confirmar a existência de uma constante, não somente no modo de funcionamento desses sujeitos, mas, além disso, o que eles têm em comum já se evidencia no essencial numa criança autista tão jovem e diferente deles que foi Marie-Françoise, criança de trinta meses, cuja cura foi relatada por Rosine et Robert Lefort em “Nascimento do Outro” 5.

Esta constância resiste ao discurso da ciência, pois para extraí-la é necessário levar em conta o que a ciência deve metodologicamente rejeitar, ou seja, o sujeito que a fez. Uma estrutura autística não se diferencia que a favor de um estudo da economia do gozo e das pulsões. Parece, sobretudo necessário levar a sério a adjunção feita por Lacan do objeto vocal nos três objetos pulsionais já revelados por Freud (oral , anal e escópico). A partir dos trabalhos de Lacan sobre as alucinações e a psicose, o objeto voz se mostra notavelmente heurístico numa outra clínica, a do autismo.

A indicação de Lacan segundo a qual “os autistas escutam eles mesmos” 6 é essencial, portanto ela é menos clínica do que estrutural: ela aponta uma intimidade de princípios do autista e sua voz. Portanto, a estrutura autística parece-me poder ser caracterizada pelos dois seguintes pontos: 1°) Uma retenção do objeto do gozo vocal , que tem como consequência, quando o sujeito sai do mutismo, duas formas de tratar a linguagem:
4 Sinclair J. Ne nous pleurez pas. "Autism Network International ", "Our Voice", Volume l, Numéro 3, 1993 5 Lefort R. et R. Naissance de l’Autre. Seuil. Paris. 1980. 6 Lacan J. Conférence de Genève sur "Le symptôme" du 4 Octobre 1975. Bloc-note de la psychanalyse. Genève. 1985, 5, p. 17.
-ou o autista fala com sua língua verbosa, com sua “voz centrífuga”, como diz um deles,
-ou ele utiliza uma língua funcional ou factual, conectada a uma voz de cabeça, ou de síntese, suportada por um objeto.

A língua verbosa está a serviço de um gozo solitário da voz, de tal forma que ela possui pouco valor de comunicação. Ela conduz à produção de solilóquios pronunciados com fins de auto–satisfação. Por exemplo, uma criança poderia recitar frases inteiras do Réquiem de Mozart e repetir: “give me hope, Joanna” ou frases como “claro, nós podemos tentar combinar os dois”, mas ele não compreendia nada7. Williams confia que na escola primária ela se falava sem parar em voz alta, indispondo todo mundo. “Diziam, ela precisa, que simplesmente eu gostava do som de sua própria voz. Era provavelmente exato”8.
No entanto, a língua funcional permite se comunicar pelo intermédio de sinais, e não de significantes, estando cortado da enunciação. Às vezes, mesmo o sujeito autista dá voz a um objeto em seu lugar para assim se expressar. Williams a nomeia “uma língua de acumulação de fatos”.

Aqui segue um exemplo de como um autista responde a uma questão sobre o sonho: “Aí dormiu roncando essa noite acordado. Bem, você estirou sobre a cama cobriu a coberta quando você dormiu você acordou você levantou da cama. Ele colocou a calça, a camisa, a meia eu coloquei as sandálias eu coloquei a cueca. Eu fechei o zíper costurando costura” 9.
Kantzas nota que a questão sobre o sonho, uma palavra sem referente concreto, para Jacques sem significação, demanda uma resposta que convoca os fatos, os acontecimentos da noite, elementos tangíveis e concretos. Essas sucessões de fatos, sem comentários, sem afetos, parecem visar uma simples representação das coisas, sem implicação da voz enunciativa. Tais propósitos são bem diferentes da falação: eles são produzidos na língua do Outro, e eles se inscrevem num esforço para se comunicar. A língua verbosa é dominante nos autistas de Kanner, a língua funcional nos autistas de Asperger. 2°) Um retorno do gozo na borda (E. Laurent), essa borda sendo constituída por três elementos intricados uns aos outros: o objeto autístico, o duplo e a ilhota de competência. Eles localizam o gozo do sujeito e lhe servem de proteção. A borda é uma fronteira erguida pelo sujeito autista, a partir de seu objeto, entre seu mundo seguro e imutável e o mundo dos outros, incoerente e angustiante.

Partiremos de um exemplo clínico para ilustrar o primeiro ponto:
7 De Clercq H. Dis Maman, c’est un homme ou un animal ? AFD. Mougins. 2005, p. 20. 8 Williams D. Si on me touche, je n'existe plus.[1992] Robert Laffont. Paris. 1992, p. 50. 9 Kantzas. P. Le passe-temps d’un Dieu. Analyse de l’autisme infantile. Dialogue. Cergy-Pontoise. 1987, p. 121.

Durante semanas, relata Mira Rothenberg, eu corrigi sua expressão oral, lhe pedindo para colocar mais energia em sua voz -“para ser mais vivo quando você fala, lhe expliquei”. Ela constata que ele “continuava surdo” a esse conselho. Ela insiste tentando a mesma técnica com a leitura: ela lhe pede para ler vividamente. “Alguma coisa nas minhas propostas pareciam ter lhe tocado, ela diz. Recebi um chute na tíbia”. Entretanto ela não desanima. Excedido, Peter colocou-se a ler “como ele chutava – com energia e vitalidade”. Uma tal leitura não implicava necessariamente que ele engajava sua presença enunciativa, além de que, ela não foi uma expressão de seu próprio sentimento, mas ele percebeu bem que era isso que não deixava de lhe ser pedido. Ele se esforçou para satisfazer sua terapeuta. “Um dia, ela relata, ele me leu uma estória com uma força e uma animação que raramente eu havia visto antes. Eu me exclamava:
-É formidável, é isso que eu queria dizer.
De repente, ele levanta os olhos em minha direção, aterrorizado. Siderada pela expressão que eu lia em seu rosto, gaguejei:
O que se passa Peter?
Ele gritou:
-Porque depois têm o cemitério!
-Depois de que?
-Quando se está bem. Então depois, tem um via sem saída e o cemitério.

Mira Rothenberg interpreta com pertinência esta ultima frase supondo que ele queria dizer “que após ter conhecido a vida era necessário morrer”. Dar vida à linguagem, é para o autista fazer escutar o angustiante objeto do gozo vocal, ora, está no princípio de sua estrutura subjetiva que ele não seja mortificado pelo significante, de forma que nada é para ele mais angustiante. A sequência desse fragmento clínico exemplar o confirma. Ela lhe faz parte do que ela havia compreendido da relação que ele estabelecia entre a vida e a morte. “Ele começou a tremer a transpirar. Depois, ele correu para a janela, ficou todo mole, se curvou sobre si mesmo como se ele se murchasse e começou a contar – o que ele não fazia mais há muito tempo”. Sublinhamos o retorno do encolher-se sob si mesmo e de um mecanismo de proteção de abandono, o que testemunha fortemente a ressonância subjetiva do incidente. Claro que ele não persiste nos esforços para mobilizar a enunciação, “inútil dizer, comenta Rothenberg, que sua maneira de falar e de ler tornou-se mais monótona que jamais”.

Depois desse episódio, ela prossegue, Peter tenta me evitar. Ele diz à sua mãe que não queria [que eu] lhe fale. [...] A mim, ele dizia: “Peter não quer que você vá com ele ao consultório do Dr. Goldstein”. Quando eu lhe perguntava a razão, ele me respondia somente: “porque Mira dirá ao Dr. Goldstein”. Eu lhe perguntava: “disser o quê?”; ele me replicava invariavelmente; “Porque Mira sabe”, ou então, “a verdade”. Ela não se aproximava efetivamente o mais proximamente possível da verdade do autismo, não hesitando em lhe formular que sua angústia estava baseada na expressão da vida?

O incidente da leitura teve uma repercussão profunda sobre a relação deles. “Ele gerou entre nós uma ruptura”, relata Rothenberg, que trabalhava com Peter a três anos, de tal forma que “regredimos por quase seis meses”. Ela tenta lhe interpretar o que se passava lhe dizendo “que ele fazia como se estivesse morto porque talvez, ele tivesse realmente medo de morrer se se tornasse vivo. Peter se distancia então de mim, ela conta, e, constantemente, ele tenta me fazer mal fisicamente, pois, ele dizia, “Mira conhece a verdade”. Depois disso, ela se sentiu “com medo de sua fúria” contra ela. Ela adivinhou mesmo confusamente que ela devia ter cometido um erro, não escondendo que ela “se sentia muito culpabilizada pela sua atitude”, de tal forma que, durante os seis meses de frieza, ela tenta desesperadamente reativar o contato“10 .
Esta vinheta clínica enfatiza a recusa do autista, recusa nem sempre tão consciente de Peter – de mobilizar o gozo vocal para servir à expressão verbal. Nada não angustia mais o autista do que ceder sobre seu gozo vocal lhe alienando na língua do Outro.

A imagem popular que faz do autista um ser mudo não é completamente impertinente:
o mutismo constitui a maneira mais radical de reter o gozo vocal. Para quem não aceita de localizar sua voz no campo do Outro, a palavra pode ser tornar impossível.

Entretanto, mais da metade das crianças autistas falam, mas suas verbalizações são originais: elas sugerem imediatamente à Kanner as noções de “linguagem de papagaio” ou de “ecolalia de retardamento”. Asperger nota que a palavra delas não parece natural, ela parece uma caricatura e evoca o escárnio. E ainda, essas verbalizações não se endereçam a um interlocutor, elas falam no vazio”11. Às vezes, os pais constatam que elas adquirem palavras novas com facilidade, sem portanto aprender à falar, no sentido onde a palavra testemunha de uma expressividade do sujeito. Eles descrevem o fenômeno notando que a criança pronuncia palavras, mas não as utiliza. Além disso, sabemos que o emprego correto do “Eu” é sempre tardio, e às vezes não acontece nunca. Na outra extremidade do espectro clínico, nos autistas de alto desempenho, se encontra regularmente uma voz artificial, particular, sem expressividade. E também, as palavras são “emitidas em vez de serem faladas”, elas se originam de um “repertório mental memorizado”, nada não é mais difícil à esses sujeitos do
10 Rothenberg M. Des enfants au regard de pierre. [1977]. Seuil. Paris. 1979, pp. 275-276. 11 Asperger H. , o.c., p. 11.
que uma “expressão pessoal”12. Quando eles falam, é sem se implicarem em suas palavras, sem se apoiarem em seus sentimentos. Eles não engajam o gozo vocal na linguagem.
Que a representação mais comum da criança autista seja de um ser mudo, repousa sobre uma certa presciência da carência enunciativa que determina essa patologia: ela não saberia ser mais evidente do que nesse silêncio obstinado. Quando o sujeito autista procura se comunicar, ele o faz sempre que possível de uma maneira que não coloca em jogo nem seu gozo vocal, nem sua presença, nem seus afetos. Se existe uma constante discernível em todos os níveis do espectro do autismo, ela reside na dificuldade do sujeito de tomar uma posição de enunciador. Ele fala voluntariamente, mais à condição de nada dizer.

A dificuldade em expressar seu sentimento incita Grandin a comparar sua maneira de pensar à de um computador. “Recentemente assisti, conta ela em 1995, a uma conferência onde uma socióloga afirmou que os seres humanos não falavam como computadores. Na mesma noite, no momento do jantar, eu contei a essa socióloga e a seus amigos que meu modo de pensar parecia com o funcionamento de um computador e que eu podia explicar o processo, etapa por etapa. Eu fiquei um pouco perturbada quando ela me respondeu que ela era pessoalmente incapaz de dizer como seus pensamentos e suas emoções se conectavam. Quando ela pensa em alguma coisa, os dados objetivos e as emoções formavam um todo. [...] No meu espírito, eles são sempre separados”13. A aproximação efetuada por Grandin entre seu pensamento e o funcionamento de um computador não é desprovido de pertinência, se concebemos que o que caracteriza o “pensamento” de um computador reside na sua ausência de afetos. “Que um computador pensa, nota Lacan, eu aceito bem. Mais que ele o saiba quem é esse que vai dizê-lo? Pois a fundação de um saber é que o gozo de seu exercício é o mesmo de sua aquisição”14. Ora, é precisamente uma tal aquisição de saber, produzida na ocasião da codificação do gozo pela entrada do sujeito na cadeia significante, que falta aos autistas. O “pensamento” de computador se passa num deserto absoluto de gozo, ele constitui uma ideal autístico.

Primazia do Signo
Sabemos que o casal Lefort defendeu que não existe S1 no autismo, de forma que o gozo do sujeito não seria codificado, entre outros argumentos para sustentar essa tese, eles invocaram a ausência do balbuciar. Faz-se conveniente dar uma nuança a esta afirmação, se
12 Williams D. , Quelqu’un, quelque part. [1994]. J’ai Lu. Paris. 1996, p. 73. 13 Grandin T. Penser en images, o.c., p. 162. 14 Lacan J. Encore. Le séminaire XX.. Seuil. Paris. 1975, p. 89.
nos detenhamos numa abordagem dos fenômenos aparentes, o que não é frequentemente o caso, os especialistas concordam sobretudo em considerar que o balbuciar da criança autista é pobre, anormal ou idiossincrático.

Segundo os lingüistas contemporâneos, “o balbucio não é a linguagem, mas ele é uma linguagem que fornece um quadro para o desenvolvimento da palavra”15, “se bem que não há descontinuidade entre as formas do balbucio e as das primeiras palavras: certas crianças dão assim a impressão de escolher suas primeiras palavras entre os sons do balbucio que gostaram de produzir”16. Durante muito tempo pensou-se que o balbuciar era um caos não estruturado; ora, constatou-se que desde o oitavo mês ele revela uma precoce adaptação aos princípios estruturais da língua materna. O balbuciar de uma criança inglesa é diferenciável do de uma francesa, de uma sueca, de uma algeriana ou de uma japonesa, de forma que ele já testemunha uma âncora do sujeito e de sua enunciação no discurso do Outro. Além disso, ele é contemporâneo das primeiras segmentações em sílabas da onda contínua da palavra, da aquisição das primeiras palavras e da descoberta de que elas são portadoras de sentido.
Um estudo preciso do “balbuciar” de crianças autistas, com idade de três a cinco anos, mostrou diferenças significativas com o balbucio ordinário. Efetuado por D.M. Ricks, ele chega à conclusão que as vocalizações das crianças autistas são idiossincráticas, pois somente as mães podem compreender certas expressões manifestadas, tais como um pedido, uma frustração, uma surpresa ou um sinal de boas vindas.

O autista, como notou Lacan, quer ficar “mestre da linguagem”: inventar sua própria língua é uma maneira de conseguí-lo. Quando ele produz um balbuciar, inautêntico, ele é idiossincrático, ele não é regido pelos recortes silábicos próprios à sua língua materna. Assim se confirma que ele não aceita deixar o real em jogo no sonoro que poderia levar a acontecer a perda de gozo que a passagem pelo Outro necessita. Cada criança tem inicialmente a capacidade de desenvolver todos os fonemas, mas para civilizar seu gozo, ele deve aceitar uma redução massiva. Ora, mesmo num autista de alto desempenho tal qual Willians, mal se fazem os cortes pertinentes, quando ela cria canções, ela discerne que por ela as palavras permanecem incorporadas na onda sonora: elas “faziam parte da melodia, escreve Williams elas vem dela”.

Devido a essas diversas razões, fundamento ecolálico da língua própria, inexistência de um balbuciar autêntico, invenções de neologismos, não fixação das primeiras palavras no sentir, rupturas pertinentes da língua que tendem a ficar incorporados na melodia, parece que 15 Boysson-Bardies B. Comment la parole vient aux enfants. O. Jacob. Paris. 1996, p. 60. 16 Ibid., p. 166 podemos confirmar a tese dos Lefort segundo a qual, no autista, não se opera a mutação do real ao significante. Eles sublinham justamente a não função do “S1 unário, o do gozo anterior pela qual o sujeito se posiciona, a partir da voz do Outro, pelo seu balbuciar”. As raras indicações de Lacan relativas ao autismo se orientam para a mesma abordagem. Dick, afirma Lacan, em 1954, vive “num mundo não humano” porque “ele não pode nem chegar ao primeiro tipo de identificação que já seria um esboço do simbolismo [...] já existe uma certa apreensão dos vocábulos, mas desses vocábulos ele não fez a Bejahung-ele não lhes assume”17. Dick, nota ainda Lacan,”está inteiramente no indiferenciado”, sugerindo que ele vive num mundo desorganizado no qual o significante não introduziu seus cortes.

Incapacidade de generalizar, pobreza da capacidade de abstração, dizem os especialistas, certamente, mas mais precisamente, falta de ter tido acesso ao significante, o autista pensa inicialmente com os sinais, os quais se caracterizam por conservar uma relação estreita com seu referente. Quando Grandin afirma ”pensar em imagens”, ela atinge às vezes o ideal do código autista: aquele que funciona com a ajuda de representações em todos os pontos idênticas à coisa. “Minha imaginação, ela afirma, funciona como os Softwares de animação gráfica que permitiram criar os dinossauros realistas de Jurrassic Park. Quando eu experimento uma máquina na minha cabeça ou que eu trabalho sobre um problema de concepção, é como se eu o estivesse vendo numa fita cassete. Eu posso ver o aparelho sob todos os ângulos, colocar-me atrás ou embaixo, e fazê-lo rodar ao mesmo tempo. Eu não preciso de um programa (Software) sofisticado para fazer testes em três dimensões”18. Uma tal imagem constitui a forma mais bem acabada do sinal icônico. Sabemos que, entre os diferentes signos, as crianças autistas apreciam preferencialmente os ícones, quer dizer os sinais motivados, pelo menos parcialmente, que representam esquematicamente a entidade, a pessoa, o acontecimento ou o atributo designado (por exemplo, o Z das placas rodoviárias para designar os cadaços; o plano de uma casa, as imagens de um homem e de uma mulher na entrada dos banheiros, etc.) Eles os apreciam porque o ícone constitui o sinal mais apropriado à suas buscas de codificações do mundo: nele se constata imediatamente manifestada uma conexão rígida do sinal à imagem do referente. No melhor dos casos, quando eles não são sem referente objetivável, os sinais levam em conta os objetos do mundo imagem por imagem ou sequência por sequência. O conceito de cachorro retorna indissociavelmente para Grandin, a cada um dos cachorros que ela conheceu na vida. Para o autista, a linguagem não permite a inexistência do que ele fala, a palavra não é completamente a morte da coisa. Ora, é somente
17 Lacan J. Le séminaire I. Les écrits techniques de Freud. Seuil. Paris. 1975, pp. 81-83. 18 Grandin T. Penser en images, o.c., p. 21. nessa condição, a da significação, que o mundo torna-se “parecido”19. Todos os observadores concordam em constatar que o “fazer como” é deficiente no autista. No princípio desse ato, se encontra o distanciamento do significante e do objeto, o que permite à criança a pretender que um calçado é um carro, que uma banana é uma avião, que o cachorro faz miau e o gato faz ouah-ouhat, etc.

O autista não tendo a possibilidade de mobilizar o significante para se expressar, passa pelos sinais aos quais ele se esforça para dar uma significação absoluta. Segundo Lacan, o sinal representa alguma coisa para alguém, reduzindo assim seu sentido ao ícone e ao índice no sentido de Peirce. O exemplo que ele convoca, o da fumaça como sinal de fogo, análogo ao catavento como o do vento, releva do índice segundo Peirce. Uma característica maior de tais sinais é que eles não apagam totalmente a coisa designada, pois eles permanecem com ela numa relação de similaridade ou de continuidade. O referente dos sinais se encontra no mundo das coisas. Tal não é o caso do significante: se ele é apreendido, segundo a definição dada por Lacan, como o que representa o sujeito, e seu gozo, para um outro significante, ele se encontra cortado da representação. O significante rompe o laço com o que ele significa, ele fica valendo que pela diferença que introduz, o que o permite fazer acontecer o símbolo, no sentido de Peirce, que “não pode indicar uma coisa particular”, mas somente “um tipo de coisas”20 .
Os obstáculos encontrados pelos autistas para generalizar ou para fazer semblante manifestam suas dificuldades de acesso ao símbolo tomado nesse sentido. No entanto, é abusivo afirmar que os autistas não têm acesso à abstração, suas capacidades de simbolização que passam essencialmente pelo índice, pelo ícone, são mais rudimentares que as do sujeito do significante. Elas colocam mesmo assim, em obra, um processo de substituição que permite levar a coisa à linguagem. Além de que, para descrever o mundo, a língua funcional de sinais consegue utilizar os sinais sonoros ou da escritura oriundos da língua do Outro.

Os sinais que formam o Outro de síntese do autista têm duas diferenças maiores com os significantes que constituem o inconsciente freudiano, por um lado, e é essencialmente o que descreve Grandin, falando de “pensar em imagens”, eles ficam parasitados pelo referente, eles não apagam a coisa representada, por outro lado, eles não possuem a propriedade de funcionar como “recipiente do gozo” (Lacan), ou como “marcadores somáticos” (Damasio), quer dizer que eles não representam a pulsão, o que todos os autistas enfatizam notando a ausência de conexão entre a linguagem e a vida emocional. Os Lefort acentuavam este ponto:
19 Miller J-A. Clinique ironique. La Cause freudienne. Revue de psychanalyse. Navarin Seuil. 1993, 23, p. 10. 20 Peirce C. S. Ecrits sur le signe. Seuil. Paris. 1978, p. 165. “na estrutura autística, o significante falta à ser corpo a falta também para ser afeto”21. Para quem pensa com sinais, a estruturação do ser não se faz utilizando a matéria significante, ora, esta matéria possuem a incrível propriedade de tomar não somente ao som, um significante deixa marcas numa fita magnética, mas também ao corpo, o que mostram as conversões histéricas, a hipnose ou o efeito placebo. A linguagem não é uma simples ferramenta de comunicação, é, segundo Lacan, a morada do sujeito, ele tece no corpo os vertentes de gozo. O simbólico com o qual os autistas se estruturam induz uma propensão à recorrer aos índices e aos ícones para apreender o mundo, portanto esses sinais não se inscrevem no corpo e não são portadores de gozo vocal, daí a obrigação de “compreender tudo pelo intelecto”, enfatiza Asperger.
A Borda Dinâmica
Da borda, Bettelheim nos propõe uma abordagem clínica pelo intermediário do que ele nomeia de “comportamento de fronteira” observado em muitas crianças autistas. Elas criam uma fronteira entre elas e o mundo exterior, o que lhes serve de proteção, de tal forma que elas ficam regularmente no interior de superfícies delimitadas pelas fronteiras criadas por elas”22. “Os mais avançados, afirma Bettelheim, o fazem com materiais tais como as correntes de papel ou de cordão”. Nota-se que essa fronteira participa de uma borda para o sujeito , “o contato constante com uma superfície é uma preliminar importante para o verdadeiro “comportamento de fronteira”, nota Bettelheim. A fronteira é uma superfície da qual o sujeito mal se descola23 .
Laurie, criança autista muda de oito anos, “construía fronteiras segundo concepções complexas que deviam obedecer a especificações rigorosas. Ela utilizava a areia, por exemplo, para fazer fronteiras sobre a pequena parede que delineava o tanque de areia, tornando-o assim seu domínio.” Ora, esse comportamento de fronteiras mobiliza às vezes capacidades surpreendentes das crianças das quais as aquisições intelectuais pareciam muito pobres. “Pode parecer exagerado, nota Bettelheim, avançar que Laurie tinha, ou havia adquirido conceitos geométricos complexos que ela utilizava agora. No entanto, é necessário precisar que Laurie criou uma linha contínua de mais de vinte metros de comprimento feita de cinquenta ondas sinusoides quase perfeitas, com a ajuda de um material bem pouco prático que é a casca, sobre um pequeno muro separando um de nossos espaços de jogo de uma 21 Lefort R. et R. La distinction de l’autisme. Seuil. Paris. 2003, p. 87. 22 Bettelheim B. La forteresse vide. L’autisme infantile et la naissance du Soi. [1967]. Gallimard. Paris. 1969, p.
186. 23 Ibid., p. 188.
calçada. Feito bem mais admirável, ela pôde resolver com muita habilidade o difícil problema de negociar o canto que formava o muro sem interromper essa curva contínua. Ela ficava sempre no interior dessas fronteiras; as fronteiras separavam seu mundo particular do resto do universo”24 .
Williams precisa a vivência que o autista pode ter desses fenômenos: “quando eu me fechava comigo mesma, era também os outros que eu fechava fora”25; “Desenhar círculos, fronteiras, linhas de borda, servem como meio de proteção face a invasão externa, vinda “do mundo”26; “o que me terrorizava, ela comenta, era que poderiam me obrigar à fazer o que eu não queria, impedindo-me de ser eu mesma e recusando a liberdade de me refugiar na minha própria prisão, certamente bem solitária, mais tão segura”27 .
A borda delimita então, um mundo interior de liberdade e de poder, pois ele constitui uma proteção com relação ao mundo exterior, mas é necessário salientar que ela se dá com um tratamento complexo da parte do sujeito, na ocasião na qual ele pode às vezes, desenvolver admiráveis capacidades.

É uma constante sempre salientada da clínica do autismo: a aptidão desses sujeitos para desenvolver o que chamamos de “ilhotas de competência”. Eles sempre se apresentam como eruditos num domínio específico: os trens, os automóveis, as plantas carnívoras, os isoladores elétricos, etc. As competências que eles adquirem nesse domínio se generalizam às vezes até a lhes permitir integrar uma inserção profissional (Joey se torna eletricista).
A borda é uma fronteira protetora que pode se tornar o lugar de implantação de uma ilhota de competência, mas é também o lugar onde o sujeito situa seu objeto – duplo que ele domina. Um objeto – duplo que lhe permite às vezes avançar “pseudópodes”, como dizia Kanner, para se aventurar além da fronteira.
Quando ele introduz a formula do retorno do gozo na borda, em I922, E. Laurent dá como exemplo a borda da “carapaça” de Tustin, quer dizer os objetos autistas protetores que a dimensão de duplo é particularmente acentuada28 . Nós enlanguescemos um pouco mais o conceito de borda autística incluindo um outro elemento, a ilhota de competência, uma das maiores fontes do Outro de síntese, que participa tão regularmente que o duplo e o objeto na localização do gozo do sujeito, se levarmos em conta as formas evolutivas do autismo infantil
24 Ibid., p. 192 ; 25 Williams D. Si on me touche, je n'existe plus, o.c. , p. 130 26 Ibid., p. 302. 27 Ibid., p. 130. 28 Laurent E. Discussion, in L’autisme et la psychanalyse. Presses Universitaires du Mirail. 1992, p. 156. precoce. A frequente interpenetração desses elementos justifica reagrupá-los sob o conceito de borda autística.
A borda é primeiramente uma proteção, mas é também e especialmente o lugar do gozo do sujeito; é se conectando nele que ele encontra sua dinâmica. Este fenômeno não foi jamais tão evidente do que na observação de Joey.

Sob sua borda, ele havia construído uma máquina, cuja função maior era de lhe fornecer eletricidade. Esse objeto autístico complexo lhe permitia tentar regular seu gozo para lhe fornecer uma energia vital. Se ligar a ele o anima, se desligar o deixa sem vida. Nos primeiros tempos de sua estadia na Escola ortogênica, ele parecia funcionar sob controle remoto, como um “homem mecânico” movido pelas máquinas que ele havia criado e que escapavam a seu controle. “Existiam momentos, por exemplo, relata Bettelheim, onde um longo período de não – existência era interrompida pelo funcionamento da máquina e de sua passagem para um regime cada vez mais elevado, até que o desfecho era atingido numa “explosão” pulverizadora. Isso se produzia várias vezes por dia e terminava logo que Joey lançava brutalmente uma lâmpada de radio ou um bulbo elétrico que explodia em mil pedaços num barulho de explosão [...]. Desde que chegava a hora de explodir o mundo, essa criança que vivia mudo e sem se mover, com muita calma, brutalmente se tornava completamente louco, correndo para todos os lados e gritando “Crack! Crack!”ou “Explosão!” lançando uma ampola ou um motor. Assim que o objeto lançado se quebrava e o barulho se interrompia, Joey se desligava também. Sem nenhuma transição, ele retornava à sua não existência. Assim que a máquina tinha explodido, ele não tinha mais movimento, não tinha mais vida, não tinha mais nada”29. As ligações de Grandin em sua armadilha para apertar, para regular sua energia vital, ou os de Williams nos seus companheiros imaginários, a fim de poder funcionar socialmente são da mesma ordem.

Bem que Tustin considere que os objetos autísticos são objetos patológicos, de tal forma que eles deveriam desaparecer ao longo de uma cura, ela constatou que a supressão brutal da proteção que eles trazem arrisca levar à consequencias nefastas. “Eu fico bem preocupada, diz ela, quando escuto as pessoas falarem em “suprimir o autismo”, ou ainda de lhe “furar”. Vi crianças, ou escutei falar de crianças, que foram tratadas em função de tais concepções: eles se tornaram hiperativos ou mesmo claramente esquizofrênicos”30. De fato, quando o sujeito autista se encontra na impossibilidade de situar seu gozo na borda, ele retorna no corpo. Quando é uma parte do corpo que faz função de objeto e de fronteira com o
29 Bettelheim B. La forteresse vide, o.c., p. 302 et p. 304. 30 Tustin F. Autisme et protection. Seuil. Paris. 1992, p. 37.
mundo exterior, fica extremamente difícil de distinguir entre um quadro esquizofrênico e um quadro autístico.

Os objetos construídos na borda possuem uma importância maior para os sujeitos autistas. Todos convergem em seus propósitos e seus comportamentos para indicar que esses objetos lhes são uma ajuda preciosa. “Devido às importantes razões, escreve Sellin, eu posso encontrar a segurança somente em objetos”; “desde minha pequena infância, nota Grandin, eu sou bem mais interessada pelas maquinas que pelos meus semelhantes”. Williams é ainda mais precisa: “Para mim as pessoas que jamais foram objetos, e esses objetos (ou as coisas que eles evocam) eram minha proteção contra as coisas que eu não gostava, quer dizer as outras pessoas [...] Comunicar através de objetos era sem perigo”.
Grandin insiste sobre o erro que cometem muitos educadores de crianças autistas quando querem acabar com suas fixações e suas “obsessões”. “Eles fariam melhor, diz ela, baseando-se em sua experiência pessoal, de aumentar o campo obsessivo e tentar orientar o interesse manifestado pelo autista em atividades construtivas. Por exemplo, se uma criança é uma fanática por navios, é preciso tirar proveito de sua obsessão para incitá-la a ler, a aprender matemática, a consultar livros especializados e a resolver os problemas de velocidade e dos nós. As fixações são uma fonte de motivações.
L. Kanner declarou um dia que o caminho para o sucesso, para certos autistas, consistia em transformar uma fixação em carreira profissional”31 . Como já sabemos por exemplo, que a criança-máquina de Bettelheim, Joey, apaixonado pela eletricidade e as lâmpadas, tornou-se eletricista na idade adulta.
Muitas críticas foram endereçadas à comunicação facilitada praticada com os autistas. Eles todos testemunham precisar durante muito tempo que sua mão fosse apoiada na do facilitador para conseguir digitar no teclado do computador, o que leva alguns observadores a considerar que sua mão é guiada pelo facilitador e que eles não são realmente os autores dos textos. De fato, progredindo, muitos conseguem restringir a necessidade de ajuda, às vezes podendo mesmo ficar sem ela, de tal forma que não existe nenhuma dúvida que eles sejam realmente os autores dos textos produzidos. A função do facilitador é estranha e suspeita para quem não concebe a necessidade da ligação sob um duplo para que um autista encontre uma dinâmica. Ser suportado pela mão do facilitador para agir é uma variante da conduta tão frequente que consiste a tomar o adulto pela mão para lhe fazer executar um ato que a criança autista poderia fazer se ela não fosse inibida no seu agir.

31 Grandin T. Penser en images. [1995] O. Jacob. Paris. 1997, p. 115.
Claro, o fenômeno da curiosa dinâmica do sujeito autista, alienada a seu duplo, foi descrita antes da invenção da comunicação facilitada. Se esta ultima foi inventada na Austrália por Rosemary Crossley, nos anos 1970, foi propagada que a partir dos anos 1990. Foi em 1967 que Clara Park relata ter feito a experiência com sua filha Elly de fenômenos em todos os pontos análogos aos que são relatados pelos facilitadores. “Para abrir uma torneira normal, ela diz, é preciso apertar e virar. Eu coloco a mão de Elly, seu pulso e seus dedos ficam moles. Eu me sirvo como de uma ferramenta de sua mão fechada na minha e eu giro a torneira. Nas primeiras vezes, toda a força vem de mim. Elly ama a água e não se cansa de ações repetidas. Pouco a pouco, imperceptivelmente (eu espero mesmo que seja imperceptível) eu abro os dedos. A pequena mão não estava mais tão mole; existem afinal de contas alguns músculos... eu levanto minha mão meio centímetro, abrindo de novo a torneira. Mais meio centímetro... um centímetro inteiro. Com infinitas precauções, eu desloco minha mão ao longo de seus dedos, sob seu punho. Ela continua fazendo funcionar a torneira. Minha mão levanta ainda, ao longo dos braços. Finalmente, não falta mais do que um dedo sobre seu ombro, o que lhe permite manter a ficção de que seja eu, e não mais ela, que age. Nós estamos diante da pia à uma hora. Mas o trabalho ainda não acabou. No outro dia é necessário tudo recomeçar para novamente restabelecer essa capacidade, mas o trabalho vai mais rápido. Em seguida eu levanto meu dedo: é suficiente agora que eu esteja presente [...] Diríamos que Elly se sente mais confortável se consegue conservar a imagem de sua própria incapacidade”32 . Uma tal retirada progressiva da mão, depois o contato, mais a necessária persistência de uma presença para equipar o sujeito de uma dinâmica, são exatamente o que relatam todos que passam pela experiência da comunicação facilitada.

Uma autista muda que a prática tenta explicar o fenômeno: “minha deficiência, escreve ela, produz uma dependência fusional. Eu esqueço meu autismo logo que sinto uma forte diretividade. Eu preciso ser propulsada na minha dependência. Eu preciso sentir mais a força canalizadora do jogo ligado ao bi-funcionamento intercorporal e intelectual”33 . Ela acrescenta: “Continuamos a nos alimentar da energia de nossos pais”34 .

O Tratamento

Certamente, os métodos de aprendizagem, tais quais ABA ou Teacch se referem a seu favor às estatísticas eloqüentes atestando sua eficiência. Sem entrar em intermináveis discussões sobre suas interpretações e sobre o que é realmente apreendido pelos números,
32 Park C. C. Histoire d’Elly. Le siège. [1967]. Calmann-Lévy. 1972, p. 65. 33 Deshays A. Libres propos philosophiques d’une autiste. Presses de la Renaissance. Paris. 2009, p. 106. 34 Ibid., p. 91. sublinhemos, sobretudo que é incontestável que resultados pelo menos equivalentes podem ser obtidos por outros métodos mais respeitosos do sujeito. Baseando-se somente nas historias de mães que conseguiram, através de métodos empíricos de inspirações diferentes, tirarem suas crianças do isolamento autístico, parece claramente que as melhoras obtidas pelo carinho e o brincar não são menores do que as adquiridas pela violência e a coerção.

Quando a família Copeland descobre nos anos 60 que, recorrer aos “carinhos­recompensas e aos tapas – punições” com sua filha melhoram claramente seu comportamento, eles acham que encontraram a chave por tanto tempo procurada do tratamento do autismo. “Eles tentaram então lhe fazer tocar todos os objetos diante dos quais ela havia testemunhado seu terror. E eles eram numerosos. Na primeira vez, ela grita com toda a sua força e muitas vezes, a abordagem parecia impossível. Mais enfim eles a seguraram solidamente pelo punho e lhe deram uma correção a cada tentativa de resistência. Porque era assim o método adotado, era preciso segui-lo. E, efetivamente, durante cansativas semanas as resistências de Anne Copeland claramente desmoronaram”35. Ora, as melhoras obtidas mais recentemente por A. Idoux-Thivet com seu filho não foram menores, portanto ela sempre recusou à utilizar “a palmada e a recompensa”, praticando uma “ludoterapia”orientada pelas reações, angustias e as manifestações da curiosidade de sua criança”36. Brevemente, a aproximação desses dois testemunhos opostos atesta que o que pode ser obtido pela violência pode ser melhor ainda pelo brincar. A cura de Dibs 37operada por V. Axline, se apoiando em brincadeiras de criança acompanhadas de uma abordagem não diretiva, o havia estabilizado desde os anos 1960.

Outra mãe de criança autista, Hilde De Clerq, considerando as diversidades dos métodos chegou à seguinte conclusão, à qual não podemos que nos inscrever, “é bem mais agradável, para todos, de seguir o modo de pensar dessas crianças e de continuar positivos, do que de lhes impor de se adaptar e de estar confrontados constantemente a problemas de comportamento. A melhor estratégia para evitar os problemas de comportamento é de antecipá-los”38. Ora, para fazê-lo, é inevitável levar em conta as maneiras delas de lutar contra a angustia.

O método ABA se limita essencialmente à abordagem dos comportamentos que ele se emprega a nomear sem procurar penetrar suas funções e sem se preocupar sobre a vida afetiva. No entanto, o programa TEACCH se apoia sobre um fino conhecimento do
35 Copeland J. Pour l’amour d’Anne. [1973] Fleurus. Paris. 1974, p. 39. 36 Idoux-Thivet A. Ecouter l’autisme. Le livre d’une mère d’enfant-autiste. Autrement. Paris. 2009. 37 Axline V. M. Dibs. [1964]. Flammarion. 1967. 38 De Clercq H. Dis maman, c’est un homme ou un animal ?. Autisme France Editions. 2002, p. 97. funcionamento cognitivo do autista, e implanta técnicas que o levam em conta, mais nesta perspectiva a vida afetiva e o trabalho de proteção contra a angustia continuam impenetráveis. A abordagem psicanalítica do autismo é mais heurística porque ela não evita nenhum domínio de funcionamento do ser humano: ela é a única capaz de propor uma compreensão, não somente do funcionamento afetivo, mas também das consequências deste sob o cognitivo. Ela é a única que pode dar conta da função do objeto autístico, do primato do signo e da estranheza da enunciação. Ela é a única que mostra, atrás da diversidade de comportamentos, o que há de constante no autismo. Brevemente, ela se apoia sobre um conhecimento do conjunto da subjetividade, enquanto que o método ABA reduz a criança à seus comportamentos, e que o programa TEACCH apreende do sujeito que sua consciência cognitiva. As abordagens que levam em conta a subjetividade têm consequências maiores para o tratamento: não se focalizando sob uma parte do funcionamento do sujeito, elas não representam obstáculo a uma escuta não restritiva do que ele expressa, permitindo assim se apoiar sob suas invenções próprias. Além de que elas valorizam a criança autista que não é imediatamente apreendido como um débil manipulador mais como uma criança inteligente bloqueada pelas suas angustias.

A rica experiência coletada em instituições cujos métodos são enraizados na abordagem psicanalítica incita claramente a constatação de que um sujeito autista “aprende a tarefa normalmente e às vezes melhor pela tangente do que quando ele é confrontado diretamente, e sem escapatória possível. Mesmo que ele apresente um ar ausente, ele observa e aprende pelo intermediário de outras crianças e poderá em seguida reproduzir o que ele viu os outros fazerem”39. Assim sendo, na Antenne 110 em Bruxelas, como nas outras instituições do RI340, como naquelas nas quais a descoberta freudiana constitui uma orientação maior, o trabalho com o sujeito autista procura, não aplicar a todos uma técnica pré determinada, mas a inventar para cada um uma maneira de fazer. “Nós partimos da criança como ela é, se diz nesses lugares, com suas potencialidades e suas incapacidades, mas também com seu objeto privilegiado [...] e nós inventamos ferramentas, estratégias para expandir, deslocar, generalizar esse centro de interesse privilegiado levando progressivamente a criança para um
39 Antenne 110. Un programme ? Pas sans le sujet. Préliminaires. Publication du champ freudien en Belgique, 2006, 16, p. 22. 40 Le RI3, rede internacional de instituíções infantis do Champ freudien, criada por Jacques-Alain Miller en 1992. Atualmente é constituída de tres instituíções membros:Antenne 110(Bélgica),Le Courtil (Bélgica), e o CRT de Nonette (França) e instituíções associadas:Podensac,I’Ile Verte e Demi-Lune(França),Le Prétexte(Bélgica)e o Hospital dia de Aubervilliers(França).Essas instituíções recebem crianças, adolescentes e jovens adultos psicóticos e autistas.Elas se orientam da obra de Freud e de Lacan. processo de aprendizagem. Assim sendo, a atenção e o interesse são suscitados pelo trabalho pedido que torna-se então, motivador em si e fonte de satisfações”41 .

Não pretendemos de forma alguma que as aquisições obtidas se façam sem restrições. A esse respeito A. Stevens defende a necessidade de uma “doce obrigação”, indicação confirmada pelos próprios autistas. “O que é que você prefere enfim, interroga Sellin endereçando-se à sua mãe, que eu não viva sem ajuda e fique deficiente ou que eu me torne autônomo, então você deve me solicitar ainda mais”. Não é pelo grau de firmeza que a “doce obrigação” se distingue da “aprendizagem forçada”, a diferença está em suas próprias naturezas. A “doce obrigação “se apoia nos interesses do sujeito; a “aprendizagem forçada”, no saber do educador.

Assim sendo, por mais úteis e bem intencionadas que sejam, os métodos de aprendizagem encontram limites. Sua eficiência, constata o relatório Baghdadli, é geralmente limitado à aquisição de uma competência específica visada pela intervenção estudada, de tal forma que ela não implica uma mudança significativa do funcionamento da pessoa que se beneficia da intervenção42. Não há razão de duvidar dessa constatação. Muitos estudos param por aí, não deixando nenhuma esperança sobre o futuro das crianças autistas.A recusa metodológica deles de levar em conta as monografias clínicas e as biografias de autistas, que contêm um saber permitindo o ultrapassar constituem comprovadamente, um obstáculo epistemológico. “Por olhar demais pelo binóculo do poder científico, observa justamente J. Berger, nossos espíritos cheios de certezas desaprendem o aleatório humano e sua criatividade”43 .

Não são aos estudos randomizados que permitem uma avaliação científica impecável que é conveniente perguntar em primeiro lugar como fazer para tratar o autismo, são aos respectivos sujeitos que possuem muito à nos ensinar. Eles procedam a um saber precioso sobre eles mesmos. Alguns são capazes e desejosos de nos ensinar qual seria “a melhor abordagem” para lhes ajudar. Sob esse ângulo, Donna Williams não hesita em se engajar, “a melhor abordagem”, diz ela, seria “a que não sacrificaria a individualidade e a liberdade da criança com a idéia que se fazem da respeitabilidade e de seus próprios valores, os pais, os professores como os conselheiros”44 .

Além disso, a maioria dos depoimentos converge para salientar a importância do apoio de um duplo no tratamento do sujeito autista.
41 Antenne 110. Un programme ? Pas sans le sujet, o.c., p. 27. 42 Baghdadli A. Noyer M. Aussiloux C. Interventions éducatives, pédagogiques et thérapeutiques proposées dans l’autisme, Ministère de la Santé et des Solidarités. Direction Générale de l’Action Sociale. Paris. 2007, p. 261. 43 Berger J. Sortir de l’autisme. Buchet-Chastel. Paris. 2007, p. 31. 44 Williams D. Si on me touche, je n’existe plus, o.c., p. 290.
Inicialmente o sujeito autista tem uma relação transitivista com os outros, como com os objetos. Então, o duplo está em tudo. Para salientar a ausência de mediação, certos clínicos relatam uma identificação adesiva. Neste nível de funcionamento, a relação com o outro arrisca facilmente cair na violência; é o que descrevia os Lefort da relação ao duplo. Segundo eles, para o sujeito autista, “o mundo é para ser destruído, ou então o destruir”. O duplo autístico que acalma só acontece que quando ele é construído, sob uma borda protetora, que localiza o gozo, e da qual o sujeito procede ao domínio. Então, não é mais um rival, mas um apoio. Bettelheim o nomeava “um eu auxiliar”, outros invocam a necessidade de uma “estrutura de apoio”, outros ainda a de um “recipiente que contém” ou de um “ajudante”. Outros se referem a uma “maternagem simboligênea”. Todas essas intuições convergem. Elas negligem, no entanto uma noção essencial. Sellin não deixa de indicá-la quando ele expressa sua espera de uma ajuda: “o agitado idiota que eu sou erra em todos os sentidos e procura um apoio compassivo a vontade sozinha não tem nenhum efeito é preciso um ponto de apoio alguém que me queira bem alguém que possa igualmente deixar-se levar alguém que seja um pensador do interior e possa trazer uma nova direção à original passada rastreando alguém que seja familiar de uma sabedoria de equilibrista e preserve o homem-sem –si da queda”45
O terapeuta deve assim, segundo ele, aceitar de se tornar “um ponto de apoio”, podendo trazer uma “nova direção”, mas, salientamos, sendo “capaz de se deixar levar”, então, alguém que saiba escutar, sem impor metodicamente suas visões, se orientando, portanto, de um conhecimento do funcionamento autístico, graças à sua familiaridade com “uma sabedoria de equilibrista”. Maneira de preservar da queda o sujeito autista, “homem sem si”, que experimenta uma deficiência de identificação.

As noções antes mencionadas, reagrupadas em torno da noção de um “eu auxiliar”, fazem impasse sobre a necessidade de “pode se deixar levar”, é por isso que o termo de “duplo esvaziado” para designar a posição do terapeuta seria sem duvidas mais apropriado. Se uma ligação sobre um duplo favorece a construção do sujeito autista, é preciso sublinhar que esse duplo não deve se propor como modelo, mais sim como canal capaz de estimular uma dinâmica construtiva.

Favorizando a ligação sobre os elementos da borda, que pode esperar o terapeuta para
o sujeito autista? Parece que essencialmente, a construção de um Outro de síntese, levando o sujeito a ordenar sua realidade, a partir de uma memorização de signos. O que Grandin leva ao extremo quando ela relata memorizar sem dificuldade páginas inteiras do Wall Street
45 Sellin B. La solitude du déserteur. Robert Laffont. Paris. 1998, p. 66. Journal para compreender o mundo que a cerca. Entretanto, o Outro de síntese sendo constituído de sinais, e não de significantes, sua inaptidão a numerar o gozo faz barreira à possibilidade de construção de um sinthome, pois esse ultimo se enraíza em um primeiro disser que marca o corpo. As soluções autísticas mais elaboradas parecem se construírem a partir de um desenvolvimento que torna autônoma a ilhota de competência. Elas dão vida à construção de uma “competência” definida como uma combinação de sinais controlados de modo a captar o gozo. Os autistas – estudiosos (prodigiosos calculadores, músicos, desenhistas, etc.) se caracterizam pela construção de uma competência pobre: ela não permite laço social, mais ela mobiliza os interesses e as capacidades do sujeito, enquanto que ela acalma seus comportamentos. Alguns constroem competências constituídas de mundos imaginários dos quais os dados são determinados com precisão a fim de satisfazerem a vontade de controle. Assim, Gilles Tréhin criou uma cidade imaginária. Ele publicou trezentos desenhos representando-a, acompanhados de dados históricos, geográficos, culturais e econômicos plausíveis relativos à “Urville”46 .

Os autistas de alto desempenho chegam à elaboração de uma competência mais trabalhada, que faz laço social, construída tendo como apoio suas excepcionais capacidades de memorização dos sinais. Eles se transformam então em especialistas reconhecidos de um campo de saber: informática, matemática, astronomia,etc. Foi frequentemente constatado que os autistas de alto desempenho exercem uma profissão derivada das ditas “obsessões” da infância. A armadilha de contenção de Grandin, construída na sua borda, a levou a ser uma universitária especializada de armadilhas para gado utilizada nos abatedouros de bovinos.
Constituídos de sinais, e não de significantes, a competência não é somente “desabonnée do inconsciente”, como é o sinthome, ela não tem mesmo a possibilidade que seja efetuada a assinatura. A competência não se interpreta: ela é assimilada pelo intelecto. Diferente do delírio e do sinthome, ela não surge ex – nihilo, ela se funde num saber já existente.

Concluindo, levemos a sério as indicações dos autistas de alto desempenho. Elas implicam de se orientar, não em abordagens universalizantes preconizadas pelo discurso da ciência, mas sobre a ética psicanalítica do caso a caso. Uma das consequências quando se trata do trabalho institucional é de ser capaz de levar em conta a subjetividade de cada um no que ela tem de irredutível.

46 Tréhin G. Urville. Carnot. Chatou. 2004.
 
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