1. Introdução
Atualmente podemos constatar a existência de uma rede de serviços de saúde mental que se propõem a trabalhar com a função do Acompanhamento Terapêutico. Este artigo tem seu enfoque neste dispositivo de intervenção clínica no serviço substitutivo, em especial no CAPS1.
Partindo da terminologia ‘atendente grude’ até chegar ao acompanhamento terapêutico, vislumbra-se que todo o esforço em demarcar este lugar produz um efeito: a criação de toda uma potencialidade clínica de valorização da singularidade do portador de transtorno mental.
A sustentação deste trabalho passa por uma articulação com a psicanálise sendo que, ao defender um esvaziamento prévio de saber sobre aquele frequenta as instituições de saúde mental, propicia uma outra versão do sujeito psicótico elaborada por ele mesmo. Assim, o desamparo do significante que norteie sua cadeia simbólica dá lugar para o laço mais moderado com o Outro mediante a presença do secretário do alienado, exercida pelo acompanhante terapêutico.
Em um mundo cada vez mais cercado de respostas e soluções medicamentosas para os mais diversos males, esforça-se em edificar um saber que seja legitimado pelo próprio sujeito psicótico.
Acompanhamento Terapêutico, histórico e definição
O AT2 se configura como uma clínica singular por se ater, justamente, a singularidade do sujeito. Já para a equipe do CAPS, se configura como uma prática extensiva aos diversos lugares internos ou externos à instituição, além de servir como um meio de auxiliar os profissionais na condução do caso clínico.
1 O serviço em que aconteceu este o Acompanhamento Terapêutico é endereçado aos pacientes em permanência-dia, sendo realizado por estagiários que são supervisionados pelo orientador da instituição e da Universidade, além de participarem de diversas atividades e discussões de casos em reuniões semanais junto à rede de Saúde Mental.
2 No decorrer do texto utiliza-se a denominação AT para se referir à prática clínica do Acompanhamento Terapêutico e a denominação at para designar o acompanhante terapêutico, ou seja, o profissional que exerce a prática.
O recurso do AT surge na década de sessenta na Argentina. No Brasil, esta prática surge com as primeiras comunidades terapêuticas3, no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
Cabral (2005) revela que uma das primeiras nomeações que os ats receberam em Porto Alegre foi a de “Atendente Grude”. O objetivo principal atribuído a este profissional era controlar o doente para que ele não atentasse contra a sua vida nem colocasse a vida de outros em risco.
Logo depois, ainda em Porto Alegre na Clínica Pinel, os ats passaram a ser chamados de “Atendentes Psiquiátricos” e eram responsáveis por ajudar os pacientes internos e por acompanhá-los dia e noite, dentro e fora da instituição. Segundo Dutra, Motta e Santos (2005), este profissional atuava sempre nos momentos em que haviam falhas na proposta terapêutica da comunidade, ou seja, ele auxiliava o sujeito em sua participação na sociedade.
Mais tarde, quando praticamente se extinguiram as comunidades terapêuticas, o at passa a ser nomeado como “Auxiliar Psiquiátrico”. Carrozzo e outros (1991) destacam que a Clínica de Vila Pinheiro, localizada no Rio de Janeiro, foi à primeira instituição a utilizar tal nomeação. A função do auxiliar psiquiátrico era exercida pelos enfermeiros, que além de desenvolverem atividades como auxiliares dos médicos, eram também considerados companheiros por conviverem com os enfermos. Este mesmo autor ainda acrescenta que os auxiliares psiquiátricos participavam ativamente no cotidiano do sujeito, coordenando comissões de pacientes para a realização de festas, jogos, e outros eventos que, sob seu ponto de vista, por menores que parecessem, acabavam por promover a reintegração deste sujeito às atividades da sociedade.
Com o passar do tempo, em meados de 1980 a 1982 um grupo de profissional multidisciplinar funda o hospital-dia “A Casa”, na qual os terapeutas foram chamados de “Amigos Qualificados”. Estes profissionais receberam esta nomeação por serem responsáveis pelo acompanhamento dos pacientes enquanto a instituição hospital-dia estivesse fechada, ou seja, este recurso foi criado a partir da necessidade de se ampliar o serviço.
3As comunidades terapêuticas são serviços com modelo institucional que tem por função fornecer suporte e tratamento aos pacientes. Estas comunidades se estabeleceram como uma nova proposta técnica de resolver os conflitos existentes no programa terapêutico.
Para Carrozzo e outros (1991), a função do terapeuta “amigo qualificado” era ajudar os pacientes a desenvolver sua capacidade de organização; realizar acompanhamentos, como ir ao cinema, aos passeios em parques ou museus, colocandose junto deles em uma atividade social que pudesse retirá-los de sua solidão.
No entanto, o autor acredita que este termo “Amigos qualificados” repassa uma mensagem equívoca e falsa, pois “não se trata de um amigo, e muito menos de um amigo qualificado”. (CARROZZO et al, 1991, p. 233).
Carrozzo e outros (1991) acrescentam que o termo “amigo qualificado” proporcionava confusões e não expressava nitidamente o que os profissionais realizavam. No entanto, o novo termo Acompanhante Terapêutico foi designado como uma ação, isto é, uma ação de acompanhar outra pessoa, constituindo assim, o Acompanhamento Terapêutico de hoje.
Pode-se observar que a prática do Acompanhamento Terapêutico, com o decorrer do tempo, foi sofrendo alterações no que diz respeito às diferentes experiências e nomenclaturas. Nas palavras de Ribeiro (2002),
tal mudança de nome vem não só dar um testemunho de modificações na clínica da psicose como também cobrar do acompanhante o seu novo endereço, ou seja, o lugar onde ele se situa nessa clínica e de onde ele fala. (RIBEIRO, 2002, p. 79).
De acordo com Greco (2000), as primeiras experiências com o Acompanhamento Terapêutico em Belo Horizonte tiveram início na década de 70, mas foi somente na década de 90 que esta prática se consolidou.
Dutra, Motta e Santos (2005) destacam que no ano de 1997, um grupo de profissionais do serviço público de Saúde Mental fundou em Belo Horizonte, a “Clínica Urgentemente”, que tinha como proposta atuar sob a perspectiva da luta antimanicomial. Esta clínica retomou a prática do AT permitindo aos profissionais um investimento no tratamento das psicoses e na formulação de hipóteses teóricas sobre este dispositivo. Esta iniciativa da Clínica Urgentemente “abriu as portas” para que outros serviços aderissem à idéia. Pode-se constatar hoje, a existência de uma rede de serviços que fazem do AT um instrumento a mais para auxiliar o paciente, que muitas
vezes está excluído da sociedade, além de ajudar à equipe de saúde mental na condução do caso deste paciente acompanhado.
Cabe destacar que o Acompanhamento Terapêutico (AT) surgiu de uma demanda específica da Reforma Psiquiátrica, passando posteriormente a se inserir num conjunto de estratégias políticas e sociais que visa à reinserção do louco, o que representa o acesso à cidadania dos sujeitos portadores de sofrimento mental. Sob este prisma, pode-se pensar que um dos investimentos em prol do sujeito louco é a prática do Acompanhamento Terapêutico. Isto está claro no discurso de Amorim e Dimenstein (2009), ao afirmarem que esta prática é uma “estratégia que tem se revelado interessante no processo de desinstitucionalização, por basear a terapêutica na potência do encontro da loucura com a cidade, possibilitando uma clínica em movimento”. (AMORIM e DIMENSTEIN, 2009, p. 10).
O processo de desinstitucionalização é um desafio para o trabalho em rede, e o acompanhante terapêutico neste contexto torna-se um fator favorável, pois será mais um a compor a equipe de saúde mental numa perspectiva da reinserção social.
Desse modo, após este percurso histórico, podemos perceber que o Acompanhamento Terapêutico se desenvolve em um contexto ampliado da clínica e da assistência ao “louco”.
Uma vez tendo contextualizado a prática do AT desde sua origem até a reforma psiquiátrica, passaremos a uma reflexão mais específica sobre o AT como intervenção clínica no tratamento de sujeitos psicóticos nas instituições de saúde mental.
Circunscrevendo o AT na Teoria Psicanalítica
Ao se discutir acerca do Acompanhamento Terapêutico na clínica da psicose, Ribeiro (2002) faz considerações importantes ao expor esta prática como uma das práticas mais requisitadas atualmente nos serviços de saúde mental. Nessa perspectiva, essa autora define o
Acompanhamento Terapêutico como uma “prática paralela de atendimento às pessoas que estejam em sofrimento psíquico”. (RIBEIRO, 2002, p.78).
O Acompanhamento Terapêutico é um atendimento clínico diferente do atendimento clínico tradicional, standard, produzido no consultório. O Acompanhamento Terapêutico constitui-se como um processo, sendo importante para
auxiliar na condução do caso, pois ele intervém diretamente no caso. Possibilita, também, oferecer uma escuta diferenciada do paciente, podendo trazer informações precisas e valiosas para a equipe. (DUTRA; MOTTA e SANTOS, 2005).
Aprofundar-se na prática do AT como recurso clínico no tratamento da psicose requer recorrer à teoria psicanalítica, já que este dispositivo tem sido comumente adotada pelas instituições da saúde mental. Tal abordagem tem como balizador aquilo que o próprio paciente indica como saída para lidar com os fenômenos invasivos da psicose, e não um saber prescrito sobre o paciente. Dutra, Motta e Santos (2005) afirmam que a psicanálise é, sem dúvida, a grande referência teórica que orienta a prática clínica destas novas instituições. Desta maneira, o at é um profissional a mais na equipe do serviço de Saúde Mental que trabalha com a possibilidade do sujeito psicótico construir laço na sociedade.
Ribeiro (2002) também situa o Acompanhamento Terapêutico como mais um dispositivo capaz de movimentar novas forças no interior da psicanálise. Para a autora é relevante a presença da psicanálise na prática do AT, possibilitando uma melhor compreensão da psicose. Neste sentido, Guerra e Milagres (2005) afirmam que “a teoria e a clínica da psicose, orientadas pela psicanálise, podem servir de balizadores para prática do AT”. (GUERRA e MILAGRES, 2005, p. 10).
No prosseguimento desta discussão na perspectiva da clínica da psicose, é importante o esclarecimento de alguns pontos que serão fundamentais para uma maior compreensão acerca do Acompanhamento Terapêutico com o psicótico. Nessa perspectiva, a clínica do AT vai encontrar sustentação teórica nas concepções lacanianas de um tratamento possível às psicoses.
Zenonni (2000) em seu texto “Qual instituição para o sujeito psicótico?” adverte acerca dessas questões. Segundo esse autor, no tratamento da psicose deve-se operar a partir de um esvaziamento de um saber prévio sobre o paciente ou de um “querer” para
o paciente. Essa posição é favorável para não propiciar uma relação intrusiva, persecutória de transferência, o que contribui para a construção de um Outro mais moderado para o psicótico.
De fato, a partir da psicanálise podemos entender o psicótico como um sujeito para o qual o Outro da lei está forcluído. Como efeito dessa forclusão não há para o psicótico a possibilidade de dar uma significação ordenadora a certas experiências quesão vividas por ele como um desamparo radical de qualquer regulação ou moderação, restando, por exemplo, a vivência da dispersão do corpo, da estranheza enigmática e da objetificação diante da alucinação ou do outro.
É o que nos diz Benetti: “Na psicose, a forclusão deixa o psicótico num gozo sem freio, não localizado, desarrumado e não simbolizável”. (BENETI, 1996, p. 89)
Esse mesmo autor faz considerações importantes sobre como um sujeito nessa condição se direciona a um analista. Segundo ele, o psicótico, muitas vezes, convida o terapeuta a ser um Outro absoluto que poderia suprir o buraco do simbólico. A essa demanda o analista não deve ceder. Nessa perspectiva, Lacan propõe que no tratamento do psicótico o analista estabeleça uma estratégia apropriada sobre a manobra da transferência.
Manobrar a transferência é dirigi-la com um objetivo estratégico de propiciar um limite a essas experiências que invadem o psicótico, deixando-o sem possibilidade de qualquer resposta. Em “O seminário. Livro 3: as psicoses” (1957-8, 1988), Lacan, a partir da noção de secretário do alienado, propõe que o analista se coloque na posição de testemunha da relação do sujeito com o Outro, silenciando para dar vazão às construções que o psicótico pode fornecer acerca de suas experiências. Dessa forma, o analista daria ao psicótico, a partir de um certo apagamento de si próprio, a possibilidade de estar na presença de um sujeito suposto não gozar, podendo então, representar um vazio onde o sujeito vai colocar seu testemunho (SOLER, 1991).
A partir do texto de Soler “Uma estabilização sobre transferência” (1991) é possível avançar um pouco mais sobre a manobra analítica na psicose. Segundo essa autora, devemos operar uma vacilação entre a posição de testemunha e de orientação do gozo. Enquanto que como testemunha o analista se silencia, na orientação do gozo, o analista trabalha como um secretário nem tão discreto, fazendo oposição nos momentos mortíferos. Segundo Soler (1991), orientar o gozo na psicose é fazer valer um dizer pelo qual o analista se faz guardião do limite do gozo, sem o qual o horror pode ser absoluto.
Dessa forma, a manobra da transferência na psicose ensina que é preciso operar um esvaziamento, evitando oferecer ao psicótico, elementos que permitam que ele nos coloque como um Outro absoluto diante do qual ele passa a ser um objeto.
Essas considerações podem ser de grande valia para a prática do Acompanhamento Terapêutico orientada pela psicanálise.
Beneti (2006) diz que refletir sobre uma dimensão de gozo que se faz presente de tal forma que inviabiliza ou dificulta profundamente as relações e os vínculos do paciente com o social, justifica a presença de um terceiro no lugar de um próximo, vizinho, norteador, articulador do vínculo entre o paciente e o social, regrado pela lei simbólica. É essa necessidade que faz surgirem as demandas das várias instituições de saúde mental, primordialmente, para a prática do Acompanhamento Terapêutico.
A consideração acima é enfatizada quando temos em mente os sintomas psicopatológicos, comportamentos, não podem ser considerados como uma manifestação em si mesma, mas sim efeito da posição de um sujeito em relação ao Outro. Dessa forma, a relação com o at pode ser transformadora das escolhas e do modo de relação que o sujeito estabelece com o social.
Ainda segundo o autor, podemos entender que essas demandas do Outro passam pelos discursos, conforme propostos por Lacan, estruturados sob a forma de um laço social entre o sujeito do inconsciente e o Outro da linguagem, no sentido de orientações e sugestões (discurso do mestre); reeducação emocional pedagógica, explicativa (discurso universitário) e ajuda humanística (discurso da histérica); passando a serem alicerces na direção do tratamento. No entanto, esses discursos podem constituírem como paredes, pilares, mas não como alicerces. O discurso psicanalítico é que pode ser alicerce de um prática não segregativa.
Isso, no entanto, não coloca o discurso analítico em uma condição de única condição para o tratamento da psicose, já que apenas o alicerce não é suficiente para qualquer construção. Pelo contrário, o discurso analítico não é suficiente para o tratamento, fazendo lembrar que é necessária a operação desse discurso junto aos outros discursos que constituem uma instituição.
O at analiticamente orientado deve operar, assim, com o discurso do analista fazendo-se valer da transferência. Nesse sentido, retoma-se a manobra da transferência já considerada acima no tratamento do psicótico ao ressaltar que o analista deve ocupar um lugar de um esvaziamento de saber e também de limite à invasão do gozo.
O at deve ocupar o lugar do outro enquanto sujeito dividido quanto ao saber no campo do Outro, com o psicótico no lugar do agente no discurso do analista. É enquanto
sujeito dividido que ele desempenhará sua função de secretário, na posição de próximo, do vizinho, do semelhante com a condição ética de não produzir significantes mestres no lugar da produção que deve advir de cada sujeito nem tampouco de tomar o próprio paciente como S1, no lugar do fascínio pela loucura ou de colocar a si próprio como S2 no lugar da verdade colocando o paciente como lugar de gozo de seu saber.
O At assim posicionado deve zelar em seu trabalho cotidiano com o
paciente para que o lugar da produção nesse discurso venha a ser
ocupado pelos S1 do sujeito psicótico. (...) Nesse caso, os S1 virão do
S2, em direção ao lugar vazio, lugar da produção do sujeito psicótico.
Temos portanto a inversão da seta no andar inferior do discurso do
analista, na psicanálise aplicada à clínica da psicose. (BENETI, 2006,
p.2)
Tendo dito do lugar do at ocupado neste discurso, deve-se agora ater-se ao lugar
do psicótico. Se o At está neste discurso como dividido, num certo lugar de desejar
saber, o psicótico se inscreverá neste discurso a partir de duas posições subjetivas a
serem encaradas em sua relação com o Outro encarnada pelo outro semelhante, próximo
e pelo At:
1) como objeto do gozo do saber do Outro na posição estrutural subjetiva de objeto a.
2) Saber, S2, como máquina-suposta-saber-produzir” suas soluções moderadoreas e
estabilizadoras.
A partir do discurso do analista, o At pode se posicionar a partir do lugar de
secretário manejando a transferência em jogo afrouxando o vínculo transferencial
erotômano ou persecutório que tende a identificação ao eixo imaginári: a-a’. Ou ainda,
trivializando o vínculo quando o psicótico se apresentar no lugar de S2 delirante, ou
seja, não trabalhando terapeuticamente com o delírio mas sim, deslocando os temas
delirantes para o cotidiano, operando com S1s moderadores de gozo. (BENETI, 2006)
A seguir, apresentamos uma reflexão a partir do relato clínico de uma
experiência de Acompanhamento Terapêutico.
Relato de uma experiência como AT4
4 As informações aqui relatadas têm como fontes: a própria paciente e a leitura do seu prontuário.
Maria5 é uma mulher casada de 33 anos de idade. Como seu marido se encontra
foragido da justiça, ela não mantém contato e nem tem notícias dele há muito tempo.
Tem três filhas deste casamento. No que se refere aos antecedentes psiquiátricos
familiares, há registros de que a tia materna, um irmão, a irmã, o tio materno e o filho
deste tio são portadores de sofrimento mental.
É a filha mais nova de um casal que constituiu uma família de 11 filhos, sendo
que atualmente todos casados e não mantém contato com a paciente. Estudou até a
quarta série do ensino primário e teve alguns empregos. Engravidou-se da primeira filha
aos 17 anos, sua mãe não aceitou a sua gravidez, levando a optar pelo casamento.
Maria iniciou o seu tratamento no CAPS em 2005, com um quadro de ‘depressão’. Neste período, nega alucinação e delírios; apresenta idéias de autoextermínio,
sem que cite planos concretos para a realização deste objetivo. Um ano
depois, após meses sem atendimento psicológico, apresenta uma piora no quadro, em
que se registram: a presença de alucinações auditivoverbais com vozes de comando e
passagens ao ato. A voz teria mandado acabar com a vida da filha. Fala do medo de si
própria e de já ter se pegado com a faca no pescoço e com veneno no copo. Estava
sendo progressivamente perturbada por vozes de comando que diziam para ela se matar.
Em fevereiro de 2007, a paciente relata um vazio insuportável, fala em desistir
do tratamento, porque não tem melhorado. Meses depois encontra-se em crise psicótica “são dois lados na minha cabeça: um do bem e outro do mau”. (sic). Maria já havia
passado por duas internações, a primeira por ingestão excessiva de medicamento
associada a álcool e a segunda por ter tentado enforcar a filha, tentativas motivadas
pelas vozes de comando.
Em 2008, após meses sem tratamento e diante do quadro, a equipe decide então,
inseri-la na Permanência-Dia de segunda a sexta-feira. Continua apresentando ideações
suicidas, “fico pensando em morrer, em como seria mais fácil, veneno ou carro”. (sic).
Permanecendo neste quadro desfavorável tentou cortar os pulsos com uma faca; troca o
dia pela noite. Foi encaminhada para internação, no entanto, por duas vezes a mãe da
paciente assinou um termo de compromisso, não concordando com esta forma de
intervenção. Posteriormente, ela foi internada num hospital psiquiátrico.
5Nome fictício.
Neste período ocorreram mais quatro passagens ao ato, duas delas com alto risco
de letalidade. Tentou cortar os pulsos, mas a filha impediu. Relata ter ingerido veneno
de rato, sendo que, desta vez, só acordou no hospital dois dias após a tentativa “fiquei
com raiva e desespero quando vi que não tinha morrido”. (sic). As outras foram através
de ingestão de medicamentos “eu vejo e dá uma vontade de tomar tudo e acabar com
isso.” (sic); e se atirando na frente de um caminhão “eu não sei o que acontece, tenho
vontade de me atirar na frente de um caminhão, ajo por impulso”. (sic).
Assim sendo, a equipe considerou necessária a sua internação, ainda que Maria
discordasse dizendo que tem três filhas que precisam dela, tentando com sua
argumentação minimizar e dissimular o quadro.
Durante o tratamento no CAPS em Permanência-Dia, Maria encontrava-se
freqüentemente deprimida, nega ouvir as vozes, “eu vou me matar, eu preciso de
ajuda”; “quero dormir o dia todo, esquecer que eu existo”. (sic). Afirma que há diferença entre pensar em morrer e querer morrer que ultimamente a segunda opção é a
mais presente em sua vida.
O trabalho do AT com Maria foi possível, após a inserção dos estagiários de
psicologia no CAPS, em setembro de 2008. O psicólogo discute com Maria a
possibilidade de um estagiário acompanhá-la. Maria relata ter conhecido e conversado
com a estagiária “me fez bem, eu desabafei”. (sic).
Diante da possibilidade de ampliar e possibilitar a intervenção e reinserção, a
paciente acolhe a proposta e mostra-se mais apaziguada, o que consolidou o início da
prática. Desde então, o trabalho do AT com Maria se configura como um dispositivo
importante no tratamento dessa paciente.
Foram realizados aproximadamente 30 encontros. No início do
acompanhamento, a paciente não manifestava muito interesse em conversar ou sair. Um
dia, ao chegar ao serviço, a acompanhante se aproximou de Maria que estava deitada.
Ao ser indagada sobre como estava Maria logo foi dizendo “não estou muito bem,
aquele velho lá em casa só fica me vigiando, é muito ruim eu não posso fazer nada”.
Ao escutar esta afirmativa, a at compreendeu que era necessário criar algumas
estratégias. A partir de então, a at esperou a iniciativa de Maria procurá-la. Esse manejo
possibilitou que Maria não se sentisse vigiada, o que foi eficaz, pois, aos poucos a
presença da at foi sendo solicitada, resultando numa aproximação maior com a paciente.
Com o tempo Maria demonstrava estar retomando algumas atividades. Percebiase
que a paciente encontrava-se mais apaziguada, menos queixosa, sem relato de ouvir
vozes e seu humor estava menos deprimido. No entanto, na semana seguinte, Maria
mostrou-se mais deprimida, queixou-se “estou desistindo de viver, estou cansada dessa
vida”, pediu alta por entender que ela não vai melhorar nunca.
Certo momento, Maria e a at foram a Belo Horizonte, na volta, Maria diz estar
se sentido mal. Ao descer do ônibus, a at e a acompanhante estavam aguardando a
passagem dos carros para atravessarem, quando Maria olhou para um caminhão que
estava vindo, e disse: “vai ser agora, vou entrar na frente daquele caminhão”. Neste
momento a at lhe segurou pelo braço e lhe disse: “você não vai!” E ela, então, não
persistiu. Depois que atravessaram a rua, a paciente olha para a at e lhe pergunta “porque você não me deixou ir?” A acompanhante ficou um instante em silêncio e lhe
questionou sobre o que havia acontecido. Ela disse não saber o que o houve. E
perguntou novamente “porque você não me deixou ir? É só você dizer no serviço que
foi um acidente!” A at ficou em silêncio.
No dia seguinte, sem fazer qualquer comentário a respeito do acontecimento do
dia anterior, Maria disse a acompanhante terapêutica: “Prometi pra mim mesma que
nunca mais vou querer entrar na frente de um caminhão, pois decidi que quero ver as
minhas filhas crescerem”. A at responde “fico muito feliz em ouvir isso, você vai
conseguir”.
Com o tempo, a at trabalhou algumas dificuldades de Maria como reconhecer e
contar dinheiro. A paciente relatou que gostaria de abrir uma conta poupança para
guardar certa quantia mensalmente e justifica este desejo dizendo que é para realizar a
festa de quinze anos de sua filha mais velha.
Após algum tempo, a paciente relata sentir falta da mãe, pois a mesma havia
mudado para outra cidade. chorosa ela diz “a tarde eu fico melhor, tem a estagiária, eu
tenho com quem conversar”.
O trabalho de AT com Maria estava em construção, mas já era possível constatar
que, em pouco tempo, ela havia apresentado melhoras que resultou na redução da dose
de seus medicamentos e de sua permanência-dia na instituição, o que confirma que o
trabalho da at aliado ao trabalho da equipe do serviço de saúde mental obteve efeito
positivo.
Após este período, há registros de que a paciente encontra-se mais participativa
nas oficinas terapêuticas, sorrindo durante as atividades. Percebe-se uma melhora e
constata-se uso correto da medicação. Tranqüila e sem estar com o humor deprimido,
mas, apresenta tremores grosseiros.
No início de 2009, registrou-se um período de estabilidade do quadro, porém, há momentos em que a paciente encontra-se chorosa, reclamando de um vazio interior, “não tenho amigos, minha mãe não liga pra mim desde que mudou”. A partir de então,
há relatos recorrentes de que a paciente não encontrava-se muito bem.
Mesmo frente a todas as dificuldades apresentadas, em janeiro de 2010, Maria
recebe alta do CAPS. Passa a frequentar o ambulatório numa frequência mensal, mesmo
queixando de não “melhorar com o tratamento” (sic). Este ato clínico não é sem efeito,
e é o que passamos a analisar nas considerações que se seguem.
Considerações Finais: uma experiência no âmbito da clínica
A partir do relato do caso clínico, torna-se relevante uma reflexão em torno de
alguns pontos importantes suscitados pela clínica do Acompanhamento Terapêutico
norteada pelos conceitos psicanalíticos expostos.
Desde o princípio, a sustentou-se uma posição que em muito difere do então
chamado ‘amigo grude’, ‘amigo qualificado’ ou ‘auxiliar psiquiátrico’, uma vez que a
marca do acompanhamento da Maria comportou o que apontamos com uma clínica do
singular.
Primeiramente, destaca-se a entrada da acompanhante terapêutica neste caso,
favorecendo uma mudança da posição por parte da paciente. A princípio, como foi
relatado, não havia a demanda de at para esta paciente, pois a equipe acreditava que
assim como a proximidade de outros funcionários não era terapêutico para ela, a
presença da at também poderia não ser. No entanto, as palavras da paciente retratam a
importância de ter conhecido e conversado com a at: “me fez bem, eu desabafei”.
Podemos notar que como a at não se apresenta a paciente com um saber prévio, isso
favorece que o sujeito seja ‘desabafado’ do Outro consistente que até então vigorava.
Uma questão marcante no acompanhamento é o fato de que, a princípio, a
paciente queixa-se do incômodo da presença dos outros. A estratégia da at de não ficar
o tempo todo ao lado de Maria e sim de esperar que partisse dela a iniciativa foi
fundamental, até que este incomodo pudesse ser nomeado pela paciente. Desta forma, a
presença da at não foi invasiva para Maria. Isto fica claro quando a presença da até solicitada pela paciente, fato que fala a favor do manejo da transferência e do não recuo
da acompanhante terapêutica diante da psicose.
Entendemos que no caso relatado, a at interviu, permitindo que a paciente
escolhesse o momento que queria falar, ou que queria calar. Dentro dessa perspectiva, a
at também ao escutar a fala de Maria: “aquele velho lá em casa, só fica me vigiando”,
deixa a iniciativa de procura do acompanhamento para própria paciente, exercendo a
função de secretário do alienado na condição de sujeito barrado/dividido com a
condição ética de não produzir significantes mestres no lugar da produção de
significantes pelo próprio sujeito. Além disso, acreditamos que a at pode se posicionar
manejando a transferência afrouxando o vínculo transferencial erotômano ou
persecutório, que tende a identificação imaginária a-a’. Desta forma, o desejo da
estagiária acompanhante de querer que a paciente conversasse ou calasse foi substituído
por uma escolha da paciente. Como já foi dito anteriormente, é importante que o at
trabalhe com as produções do paciente, pois do contrário, uma postura do at que não
esteja pautada em um cálculo clínico, pode ser desastrosa. Para tanto, a função de
secretário do alienado opera a partir de um esvaziamento do Outro consistente e invasor
tal qual percebemos nas vozes de comando relatadas por Maria.
Ainda dentro da reflexão proposta, pode-se acrescentar que ao permitir uma
relação menos persecutória e invasiva de transferência, a at “abre as portas” permitindo à paciente a construção de uma relação suportável com o Outro.
A seguir, apresentamos um outro momento em que a função de secretário parece
ter sido fundamental no tratamento da paciente, na medida em que a AT colocou um
limite na posição da paciente de objeto frente ao Outro. A paciente ao atravessar a rua e
ver um caminhão tem a ação em ir a sua direção, “vai ser agora, vou entrar na frente
daquele caminhão”. A iniciativa da acompanhante foi de segurar à paciente. É neste
momento, que a acompanhante tem a postura de um secretário, de um sujeito barrado,
como aquele que impediu a entrada da paciente na frente de um caminhão. Trabalha
como um secretário, fazendo oposição nos momentos mortíferos, limitando o gozo.
Certamente não foi a força física de segurar no braço que conteve a paciente, mas antes
a barra simbólica que fez frente ao ato a ser cometido.
A at ainda se silencia diante da indagação de Maria “porque você não me deixou
ir?”. Aqui, a acompanhante atua a partir de um esvaziamento de um saber prévio sobre
a paciente. Este vazio impede o psicótico de colocar o acompanhante como Outro
absoluto que responde as questões, do qual ele possa a ser um objeto. É desempenhando
esta função de secretário que o at pode esperar deslocar-se do lugar do imaginário em
que muitas vezes é colocado. Ao silenciar, o at estabelece uma possível iniciativa de
saber do sujeito. A partir da seguinte declaração: “Eu decidi nunca mais querer entrar
na frente de um caminhão, pois decidi que quero ver as minhas filhas crescerem”,é possível notar que Maria passa a ser um operador do seu tratamento.
Nesse sentido, podemos pensar que o at posicionado analiticamente, zelou para
que o lugar da produção no discurso fosse ocupado pelos significantes do próprio
sujeito, possibilitando uma construção.
Assim, as intervenções da at contribuíram para sustentar o manejo do caso para
além do quadro sintomatológico descrito pelos manuais de psiquiatria. O fato da Maria
experienciar alucinações audioverbais de comando que, às vezes, culminam em
passagens ao ato, não eram o suficiente para selar seu tratamento no CAPS. Pelo
contrário, aos poucos, pode-se perceber a paciente em questão passa a fazer um uso
disto – com o que dispõe de recurso simbólico – dialetizando a invasão do Outro com o
amor pelas filhas. Isto basta para uma alta, já que não estamos atrás da garantia de vida,
mas sim da garantia de amor, de laço, de inserção no discurso social.
Após o percurso traçado no presente artigo, acredita-se que o Acompanhamento
Terapêutico pode ser um dispositivo clínico importante, desde que se respeite certos
balizadores teóricos fundamentais para que o sujeito – seja ele psicótico ou não exerça aquilo que tem de mais intrínseco: a sua singularidade.
Referência Bibliográficas
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/10183/7429>. Acesso em: 07 mar. 2010.
CARROZZO, Nelson Luiz Magalhães et al. A RUA como espaço clínico: Acompanhamento terapêutico.
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Recebido em Julho de 2010
Aceito em Agosto de 201