ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 08 Maio de 2009 à Agosto de 2009
 
   
 
 
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Fio da Navalha: A construção de uma Rede (Razor's Edge: Building a Network)

 
   
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Maria Carolina de Andrade Freitas

 
 

Técnica do Programa Prestação de Serviço à Comunidade,
Psicóloga e Especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Newton Paiva.

Renata Dinardi Rezende Andrade
Técnica do Programa Liberdade Assistida da PBH,
Psicóloga do Instituto Raul Soares- FHEMIG no período de 2000 a 2005,
pesquisadora do CNPq, Especialista em Fundamentos da Clinica Psicanalítica pela FUMEC.

 
     
     

. Resumo: As medidas sócioeducativas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade são executadas pela Secretaria de Assistência Social / PBH, em parceria com o Juizado da Infância e da Juventude e Pastoral do Menor. Este texto pretendeu abordar a construção de uma rede através do relato de um caso paradigmático, apontando ainda a posição dos envolvidos de considerar o saber do sujeito em detrimento de um saber técnico, previamente elaborado bem como a criação de estratégias para a construção .
. Palavras Chaves: subjetividade; construção do caso clínico; rede; psicose, medidas sócioeducativas.

. Abstract: Measures of socio-Assisted Freedom and Community Service run by the Department of Social Services / PBH, in partnership with the Judge of the Juvenile and Children's Ministry. This paper sought to address the construction of a network through the report of a test case, also pointing to the position of those involved to consider the knowledge of the subject rather than a technical knowledge, previously prepared and the creation of strategies for building.
. Keywords: subjectivity; construction of clinical case; network, psychosis, educational measures.

. Leo chegou a instituição para iniciar o cumprimento da medida sócioducativa por ter recebido medidas cumuladas de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço à Comunidade (PSC). Não fazendo distinção entre elas entendia as duas como uma única medida. Tais medidas foram aplicadas em função dele ter ameaçado seus parentes com instrumento cortante e por ter descumprido medidas anteriormente determinadas pelo Juizado da Infância e da Juventude.

. Neste primeiro encontro apresentava-se agressivo, reivindicatório, queixoso e beligerante. Suas agressões eram dirigidas a sua genitora que neste momento o acompanhava. Quanto às reivindicações, endereça-as também a técnica, do PSC, que o atendia, dizendo que estava cansado de ser observado pelas pessoas e tratado como um objeto, uma peça de museu. Até que após sucessivos rompantes agressivos, saídas da sala de atendimento e tentativa de rasgar os formulários do serviço, Leo indicou que seria o único capaz de saber o que acontecia com ele. Afirmava não ter possibilidade de cumprir a medida tecendo uma exaustiva lista de sintomas que o impediam de ser encaminhado para entidade: dormência nos braços, crises de epilepsias, desmaios, visões, amenésias, bloqueio dos pensamentos e insônia. Colocava que tais crises eram tratadas pelo irmão mais velho como se fossem brincadeira, e que sua família exigia que trabalhasse e ajudasse no seu sustento. Não suportando tanta exigência, entrava crise.

. Após este momento Leo retornou à medida dizendo que seu irmão estaria internado em um hospital de Belo Horizonte em função de ter sido atingindo por uma bala. Considerou espontaneamente que ele e o irmão correriam risco de vida e anunciava estar sozinho em casa. Neste encontro, apresentou-se apaziguado e disposto a conversar: os traficantes foram pegar o meu irmão, eu tive que colocar o peito na frente para ele fugir pelo telhado, mas mesmo assim eles atingiram ele nas pernas. Sabe que com isto tudo eu já não sei de mais nada!

. Se Leo não sabia tudo podia dar chance ao encontro. O Outro já não o observava mais como se fosse um objeto. Dividiu seu problema com a técnica do PSC: queria visitar o irmão mas não possuía um documento de identidade válido, pois sua certidão de nascimento que trazia guardada no bolso encontrava-se em deplorável estado.

. Este é o primeiro tempo em que há uma articulação interna entre as duas medidas. Ainda não estava claro para os técnicos das medidas porque Leo respondia somente ao PSC, não comparecendo para iniciar o cumprimento da LA. Pensava-se em uma estratégia conjunta para que ele pudesse chegar ao LA e como ajudá-lo a visitar o irmão no hospital.

. As técnicas das medidas fizeram contato com a equipe do Hospital que liberou um documento escrito para Leo visitar o irmão. Com isso ele passou a demandar à técnica do PSC que o ajudasse a organizar os pensamentos, comparecendo à regional duas vezes ao dia, sempre antes e depois de algum evento para relatar os acontecimentos.

. A mãe do adolescente não retornou mais à regional anunciando sua dificuldade em assumir seu filho. Diante disso a técnica do PSC pediu a autorização de Leo para conversar com a avó materna, que durante muitos anos foi a pessoa responsável por ele. Permitiu o encontro desde que participasse da conversa. Nesta conversa a avó relata suas diversas tentativas fracassadas de encaminhar o neto para tratamento. O jovem apresentava freqüentes crises de agressividade dirigidas a avó, e esta considerava que tais crises eram produzidas por ele em decorrência do uso das drogas. Mostrou-se impossibilitada em acolhê-lo em sua casa, mas apresentou-se disposta a ajudá-lo, custeando algumas despesas e acompanhando-o em alguns encaminhamentos gerados a partir dos atendimentos.

. A partir disso, Leo apontou a importância de retirar nova documentação e pediu à técnica para ajudá-lo a colar sua certidão de nascimento enquanto aguardava a segunda via dos documentos. Assim, surgiu também a construção de uma carta ao Juiz indicando os motivos – que só ele poderia dizer – da impossibilidade de prestar serviço dentro de uma entidade. Leo conferiu a técnica o lugar de relatora e descreveu toda a série de sintomas que sentia em seu corpo para que a mesma registrasse e escrevesse na carta. Fazia inscrever também que, apesar de não conseguir prestar serviço à comunidade, necessitava de atendimento médico e psicológico, e desejava que seus pais fossem responsabilizados pela negligência. Após a construção da carta disse a técnica que gostava de conversar com ela porque seu pensamento ficava mais claro.

. Entretanto, antes que pudesse tirar os documentos, seu irmão recebeu alta. Leo compareceu à regional dizendo ter o prazo de 48 horas para deixar o bairro em que morava com o irmão, em função de uma ameaça de morte. Pediu um abrigo, pois não poderia voltar nunca mais para o seu bairro, uma vez que lá estaria tomado pelo tráfico.

. Leo e seu irmão residiam nesta casa já algum tempo, sozinhos, sem a presença dos genitores. Cabe ressaltar que seus pais são separados há muitos anos e ambos constituíram outras famílias, deixando estes filhos sob os cuidados da avó materna.

. Em função das discussões entre as medidas, a técnica apresentou ao jovem a possibilidade de recorrer à Promotoria da Infância e da Juventude, a fim de ser inserido no Programa de Proteção. Leo demandou, então, que esta o acompanhasse. Estava agitado, sem comer, sem dormir, com muita coisa na cabeça e só queria resolver aquela situação. Ser acolhido pelo Programa de Proteção implicou em responder algumas regras, dentre elas afastar-se da família e do acompanhamento técnico da medida, o que provocou no adolescente uma “crise convulsiva” seguida de atuações. Tão logo foi encaminhado para o abrigo tentou evadir do local e manteve-se hostil com os funcionários. Provocando os programas envolvidos a pensarem conjuntamente como as regras se aplicariam diante da particularidade do caso: o programa de proteção – após conversa com a técnica do PSC – autorizou uma exceção à regra, ao permitir que Leo se comunicasse com sua avó materna. Porém, tal autorização não se fez suficiente para manter o jovem neste Programa.

. Aproximadamente quinze dias depois, Leo foi desligado do Programa de Proteção por não conseguir seguir as regras. Diante de tal desligamento, recorreu à Promotoria e aos técnicos do Programa de Proteção pedindo a eles que não desistissem dele. Houve então uma tentativa de encaminhá-lo a um serviço de urgência psiquiátrica. Entretanto, o jovem não conseguiu permanecer em tratamento, retornando à Promotoria onde apresentou nova crise convulsiva seguida de uma tentativa de auto-extermínio por ingestão de remédios.

. Foi nesse contexto que a Promotoria acionou as técnicas das medidas, na tentativa de construir outro encaminhamento. Em caráter de urgência, a Promotoria o encaminhou a um Hospital Psiquiátrico da Rede Pública, com um mandado de internação.

. Uma coincidência permitiu um ponto de enlaçamento da rede: a técnica da medida de LA também compunha a equipe do Hospital, como psicóloga de uma das unidades de internação. Assim, quando ele deu entrada no setor de urgência, tal técnica promoveu junto ao próprio Hospital uma construção do caso: reuniu elementos da história de Leo que permitiam apontar a necessidade daquela intervenção e acionou a técnica do PSC para fazer uma abordagem do jovem, no intuito de aproveitar a transferência estabelecida entre eles para propiciar a abertura ao tratamento dentro da instituição.

. Ao ver a técnica do PSC, Leo a apresenta para o hospital localizando-a como técnica do LA. Mais uma vez aponta a não distinção das medidas fazendo das duas uma única. Neste contato com o jovem a técnica do PSC possibilita a entrada da psicóloga do hospital, apresentando-a à Leo, e indicando que dentro daquela instituição também era possível conversar. Este passou a endereçar-se à psicóloga do hospital sem reconhecê-la, no entanto, como técnica da medida de LA.

. Naquele momento, apresentava-se muito irritado com sua permanência na sala de observação, provocando na equipe de enfermagem certa resistência em seu acolhimento. Dizia que não era doido, e que era diferente daqueles que ali estavam. No entanto, esta diferença colocada por ele era lida por esta equipe como se quisesse obter regalias. Apresentava-se para o outro como marginal, promovendo no outro um certo repúdio, escamoteando assim seus delírios e alucinações. A conduta desta equipe pautou-se no elemento que Leo oferecia: a marginalidade. Com ameaças afastava qualquer possibilidade de tratamento.

. Não é sem dificuldades que ele foi encaminhado para a enfermaria, pois a princípio a avaliação dos profissionais da sala de observação era que Leo não necessitava da internação. O que possibilitou sustentar a indicação de permanência, foi a construção feita “diariamente” pelas instituições envolvidas.

. Antes de Leo chegar à internação foi realizada uma reunião com os profissionais desta unidade apontando a forma com que ele se relacionava com o Outro, a saber: convidando-o para a briga. O fato da equipe não responder a esta provocação, possibilitou ao jovem encontrar outros modos de relação com o Outro. Podemos dizer que aí a equipe conseguiu fazer um giro de discurso, possibilitando assim o enlaçamento de Leo com o tratamento.

. Leo foi chamado a participar da construção de seu tratamento, ora atendido pela equipe do hospital, ora por “alguém de fora”, mas ao mesmo tempo alguém que não estava desvinculado do circuito feito por ele: a sua rede. Isto pôde fazê-lo suportar o período de internação. Lançou mão da identificação de “doente do braço” como uma forma de fazer-se caber em um “hospício”. Pediu a psicóloga uma faixa, pois sentia muita dor no braço em decorrência de uma prata que saía do lugar. Mostrou uma cicatriz como forma de comprovar que ali existia uma prata. Ao colocar a faixa sua dor melhorou instantaneamente.

. Ainda reagiu dentro da enfermaria, algumas vezes ficou contido no leito, mas foi achando aos poucos outras maneiras de transitar na instituição. Solicitou um óculos escuro para circular na enfermaria sem ver os demais pacientes. Em outra situação percebeu que alguns pacientes conquistaram a confiança dos enfermeiros, mas que isto era algo a ser construído, não estava pronto para os outros, nem para ele.

. As equipes elaboraram conjuntamente com Leo uma “agenda” discriminando nela as atividades diárias. Passou a orientar-se por esta agenda e a se referir a ela como uma estratégia para ficar no hospital. Diversas vezes reclamou da rotina, dos pacientes “doidos” e ameaçou fugir para a Promotoria. Sendo necessário durante o recesso do carnaval anotar, em sua agenda, os dias em que a Promotoria estaria fechada.

. Ainda no período da internação relatou um sonho a técnica do PSC, em que os traficantes do bairro onde morava, distribuíam armas para as crianças, obrigando-as a cometerem crimes. Ele tinha recebido do traficante uma arma. Até que veio um policial e prendendo o traficante, Leo pôde dispensá-la. Concluiu que quando saiu do bairro onde residia dispensou a arma.

. Durante todo este período foram mantidas reuniões com a rede, para construir outros encaminhamentos. Ainda fazia-se necessário pensar como seria o desligamento de Leo do Programa de Proteção, já que a proteção é algo que ele não dispensaria. Além disso colocou-se também a necessidade de uma construção a ser feita no que dizia respeito à implicação da família e quanto ao local onde ele iria residir.

. Num primeiro momento a avó evitou a atender os telefonemas de Leo e a visitá-lo. A equipe do hospital conseguiu também contactar o pai que reaproximou do filho levando para ele cigarros. Apesar de não o ter visitado regularmente passava pelo hospital deixando cigarros, mantendo uma presença silenciosa e distanciada.

. As reuniões da rede seguiram-se tensionadas pela urgência da alta que Leo exigia. Foi trabalhada com ele sua passagem ao Hospital Dia . Utilizou-se o recurso da apresentação de caso com a equipe do Hospital Dia a fim de avaliar a inclusão do mesmo nesse serviço. Acordou-se, então, que tal serviço o receberia, mas que Leo continuaria sendo acompanhado pela psicóloga da unidade de internação. Este cálculo baseou-se no pedido do jovem.

. Leo mostrou-se cada vez mais persecutório em relação aos pacientes da enfermaria, interpretando delirantemente qualquer gestos que vinham destes. A agenda não mais se mostrou suficiente para organizar sua rotina. Sua urgência precipitou um ato analítico: foi feita uma liberação de final de semana para que fosse ficar com a avó, em função da eminência de uma passagem ao ato dentro do hospital. Foi preciso uma aposta de que a casa materna poderia conter esta anunciação. A avó foi chamada, consultada e aceitou o desafio, após um longo período em que evitou os contatos com o neto.

. Neste instante o local da moradia de Leo não estava definido. Amparada pela equipe do Hospital Dia, a avó consentiu em estender o prazo de permanência do neto em sua casa, possibilitando a alta da internação para o tratamento no Hospital Dia, até que a rede pudesse buscar uma pensão para residir. Este tempo marca a entrada da avó no tratamento do neto, ao desvelar para ela o sofrimento do mesmo. Além disso, a avó pôde neste momento elaborar uma demanda de tratamento, dizendo que precisaria se tratar para recebê-lo num momento posterior, endereçando esta demanda a princípio aos profissionais do Hospital Dia. A equipe acolheu e escutou a partir da fala de Leo – ela fica querendo tratamento às minhas custas – que esta não poderia ser tratada no mesmo serviço em que ele era atendido. Desta forma, a avó foi encaminhada ao Juizado da Infância e da Juventude, onde já havia estabelecido um vínculo anterior com um técnico do SAASE que passou atendê-la sistematicamente.

. A avaliação de onde Leo poderia residir – já que estava ameaçado de morte – se deu conjuntamente entre a equipe do hospital, as medidas socioeducativas, o Juizado e a Promotoria da Infância e da Juventude e o Programa de Proteção.

. Neste encontro formalizou-se a necessidade de uma reunião mensal entre os parceiros envolvidos. Com a liberação da verba disponibilizada pelo Programa de Proteção para o aluguel da moradia de Leo a equipe do hospital e das medidas o acompanharam até uma pensão localizada, estrategicamente, nas proximidades do hospital. Esta pensão também apresentava uma peculiaridade: a de ser administrada por uma senhora que apresentava um certo saber fazer com a psicose!

. A entrada de Leo tanto no Hospital Dia quanto na pensão trouxe a marca da sua apresentação: a identificação com a marginalidade. Esta identificação surge na medida em que ele sente-se ameaçado e perseguido pelo Outro. Estão armando contra mim... eles ficam rindo de mim pelas costas... eles estão me chamando de preto... querem me expulsar... e então a cabeça fica cheia de pensamentos . Ele não dis/pensa: a partir deste ponto responde ao outro ameaçando-o: vou voltar para o tráfico... vou chamar meu grupo para pegar vocês.... eu era um guerreiro importante... já matei... conheço o miolo do crime... eu mato você duvida?... Quando os pensamentos ocupam toda a sua cabeça entra na série de atuações, exigindo da rede um tratamento desse Outro. As atuações aparecem como “soluções” para o inferno dos pensamentos que o invadem.

. Foi assim que Leo chegou na Promotoria para denunciar a pensão onde estava. Segundo ele, aquele lugar não oferecia proteção, uma vez que não havia extintor de incêndio: eu conheço um pouco da lei, sei que todo lugar tem que ter extintor de incêndio! Aquilo pode pegar fogo! Demandou uma intervenção, anunciando que as coisas estavam prestes a pegar fogo.

. A sua chegada à Promotoria só foi possível a partir de um cálculo clínico: Leo chegou ao Hospital Dia muito irritado, invadido, dizendo que não voltaria para a pensão, exigindo da equipe sua mudança para uma outra moradia imediatamente e ameaçando abandonar o tratamento e voltar para o tráfico, caso esta exigência não fosse tratada, ligando insistentemente para a polícia militar a fim de denunciar as irregularidades da pensão.

. Este momento exigiu das equipes uma certa invenção: propor que, então, ele fizesse a sua denúncia junto à Promotoria, mas que se responsabilizasse pelas suas decisões. Foi dito a ele que sua saída da pensão poderia se dar de outra forma, e que ele era responsável por seus atos. Nesta hora a posição da equipe não foi de convencer Leo a ficar na pensão, nem no tratamento. Era uma tentativa de trazer a dimensão do sujeito e responsabilizá-lo por suas escolhas, sem deixar no entanto de escutar a denúncia trazida por ele: a falta de proteção a que se sentia submetido. A Promotoria o acolhe para permitir que sua denúncia fosse realizada, mas ao mesmo tempo esvaziada de sentido. Vou embora e vocês vão ficar aqui falando de mim, a equipe responde que se ele partisse a reunião estaria encerrada. Nesta hora as equipes confirmam para Leo que ele era o único capaz de saber de si mesmo.

. Leo retorna a pensão e ao tratamento, após esta conversa, mesmo apresentando dificuldades. Tal situação marca a necessidade dos parceiros envolvidos em sustentar uma ausência/ presença que permitisse a ele localizar os dispositivos de seu tratamento e endereçar-se ora a um, ora a outro.

. Diante disso, a equipe fez uma aposta – a partir do indicativo de Leo – de que era necessário um encontro com o Programa de Proteção. Ao se aproximar deste encontro ele lança mão de acionar seus representantes para mediar a conversa: no instante anterior ao encontro com o Programa de Proteção, solicitou que ou a psicóloga do hospital ou a técnica do PSC o acompanhasse.

. Deste encontro se construiu um novo momento: Leo ainda pedia que alguma mediação fosse feita por este programa junto à pensão onde estava residindo. A presença do irmão começou a incidir sobre seu tratamento, trazendo desafios. Usando de Leo para obter vantagens, o irmão se aproximava e o convocava à marginalidade.

. Por vezes agrediu pacientes no Hospital Dia, como se endereçasse ao tratamento um pedido desesperado de contenção. Outros elementos ainda agravam tal situação: o fechamento do Hospital Dia e as férias da psicóloga que o acompanhava. Perguntava aos técnicos quando este serviço iria fechar, reivindicava a necessidade do tratamento e temia que com a impossibilidade do tratamento tivesse que retornar à favela: Como vou ficar sem tratamento?... O Hospital Dia está com os dias contados... isto deixa minha cabeça cheia... minha vida precisa ser exata... sua ausência está muito difícil, não tenho ninguém para conversar, ninguém conhece minha história, fumei maconha pra ficar mais calmo porque tá muito difícil... não tô dando conta! A exatidão do pensamento não se presentifica. Os pensamentos o invadem como um “enxame” inexato.

. Nesse contexto, é que o Programa de Proteção sustenta junto à Leo que ele precisa suportar algumas leis: não pode voltar para o tráfico e deve permanecer em tratamento senão será desligado. Ao que ele responde: Ah! eu sei cada um com a sua responsabilidade... eu estou me esforçando... eu tenho proposta: vou voltar pra casa da minha avó e tratar no Cersam...
Este trabalho vem permitindo a Leo ir – em sua medida: uma coisa de cada vez; um tijolo após o outro – construindo e distinguindo os dispositivos de sua rede: assim nomeia a psicóloga e a técnica do PSC como esclarecedoras de idéia, dizendo que elas andam cada uma ao seu lado e refere-se ao Programa de Proteção como seu guia turístico, mostrando que é possível circular pela cidade de outra maneira.

. Cada dia requer uma nova construção, na qual os impasses se apresentam a todo momento, fazendo do trabalho uma aposta.... sem garantias.

Fio da Navalha:

. A instituição, sustenta Zenoni , nasce de uma necessidade social de responder há alguns casos através de uma estrutura coletiva. Ela comporta um corpo de regras que existe para ser relativizado, como aposta na restituição de um Outro possível para qualquer estrutura.

 

Quer dizer novas normas, novas formas de funcionamento que permitam tratar e acolher com justeza, esta forma singular de subjetividade que a psicose presentifica. Pois, como nos lembra Eric Laurent,“ tomar a regra pela regra e ponto final”... Posição que submete o sujeito a uma lei anônima, ou seja uma lei que não é sustentada por nenhuma particularidade.

. O caso de Leo evidencia a necessidade do tratamento pela instituição já que seu acolhimento na rede perpassa por vários pontos e se torna, assim, uma “clínica de muitos”.

. O termo rede segundo Viganò comporta a idéia de que o sujeito possa ir de um lado a outro e funciona como um conjunto de trilhas que permite as pessoas chegarem em pontos preestabelecidos a partir de seus sintomas. Este movimento não exclui um engodo: lugares de segregação especializados que ofertam ao sujeito uma identificação social, efeito paradoxal da organização em rede. Uma segunda referência para pensarmos a questão da rede seria entendê-la, como propõe Garcia , para além do seu circuito Saúde Mental em seu sentido estrito psiquiátrico.

. Uma rede de redes seria a matriz para se pensar uma nova estrutura de atendimento ou ainda, seria a dimensão que convém ao espaço público destinado ao atendimento de uma certa faixa da população: ou o que entendemos de egresso, reincidente, repetente, caso perdido. Ele exemplifica com o caso de um sujeito que dá entrada na rede pela primeira vez, por uma insuficiência escolar, uma segunda vez por uma infração, uma terceira vez por sofrimento mental... Atenta-nos para o fato de que cabe ao sistema como um todo não se apresentar sempre no mesmo lugar, visto que o primeiro a reincidir é a instituição na sua mesmice, no seu anacronismo, em seus hábitos quando tudo já evoluiu. Assim: Não há repetentes, nem egressos, nem reincidente, quando pensamos o atendimento a partir de uma rede de redes. No caso de Leo este parece fazer o mesmo percurso apontado por Garcia. Nosso desafio consiste em não tratá-lo como um reincidente ou como um objeto de intervenção estatal. Nossa aposta se faz de um outro lugar.

. A dialetização das regras constitui também uma forma de sustentação da transferência sem, entretanto, tornar-se a resposta pura e simples à elaboração reivindicatória de Leo. Lacan irá se referir as manobras da transferência num sentido estratégico para a condução do tratamento; um manejo que possibilite barrar o gozo do Outro que invade o sujeito na psicose. É importante saber em qual posição se situar na condução do tratamento de um psicótico, para que se tenha o cuidado de não entrar no lugar do perseguidor, aquele que goza, para não colocar o psicótico no lugar de objeto de gozo e, sim, no lugar de sujeito.

. Este caso impele à construção de novas formas de manejo dentro dos serviços públicos, tensionando e exigindo a participação dos envolvidos na busca de novas saídas para os impasses apresentados, pela singularidade de Leo.

. Tal manejo não pode perder de vista o trabalho de responsabilização do sujeito. Isto nos ensina a psicanálise, ao considerar que somos sempre responsáveis por nossa posição de sujeito. Leo foi chamado a participar do seu projeto clínico. Isto é permitir que ele não seja novamente: objeto, peça de museu. Que ele diga o que só ele pode dizer e que, ao dizer, torna-se responsável também pelas construções feitas.

. Lacan propõe que os alienistas sejam secretários do alienado, que se tome o dizer do paciente ao pé da letra. Tomar ao pé da letra significa não interpretar a sua fala. Trata-se de um secretariado: se colocar numa posição de testemunha, uma posição que requer um certo cálculo e muita cautela para que não se caia no lugar de um Outro absoluto.

. Se o jovem não é objeto, observado por todos, também os técnicos não o são em relação à ele. Ora se apresentam destituídos de um saber mortífero, persecutório, ora precisam questionar a posição de Leo, apontando que outras saídas são possíveis e que nem todo ato é permitido, fazendo referência a um Outro organizador e não a um Outro total, sem barra. Desta forma, Leo pode endereçar-se ao Outro sem ficar a mercê dele.

. A posição técnica, portanto, não coincide com o saber técnico, aquele que define a priori os caminhos, mas aposta caminhar no fio da navalha, um caminho que considera o sujeito, responsabiliza-o por sua posição, sem tratá-lo como objeto de investigação. Andrade , em seu texto Construção X Discussão do Caso Clínico aponta que na Discussão do Caso Clínico a prevalência é a história factual do sujeito. Operando na lógica do discurso médico a discussão coloca o paciente como objeto de um saber outro que não o seu próprio. Já a Construção do Caso Clínico valoriza, no ato clínico, a história subjetiva. O que irá orientar, estabelecer a condução da escuta é menos a sintomatologia, a conduta ou o comportamento do sujeito, mas tudo que possa extrair de sua história. Tal Construção é uma tentativa de romper a lógica das discussões clínicas privilegiando o saber do sujeito.

. Levar a subjetividade em consideração é, como sustenta Garcia , uma tarefa tensa. Em que a escuta clínica – entendida aqui não no seu sentido estrito, mas como a possibilidade de escutar a posição do sujeito – se faz dentro do serviço público, aliando à política e à metodologia do trabalho o interesse pelo sujeito. Ou ainda segundo este autor a a Construção tem a pretensão de elaborar um saber inédito sobre o sujeito .

. Essa tentativa de articulação, entre o que é da ordem do serviço, da política, e o que é da ordem da subjetividade não se encontra (pré)estabelecida. Por isso, tal movimento de operar entre, necessita ser construído caso a caso, contemplando também as regras das instituições. A transferência, poderíamos dizer é conseqüente deste movimento. As intervenções só podem ser avaliadas a posteriori. Seus efeitos também não estão (pré)escritos. É necessário acompanhar o movimento do próprio sujeito e suas limitações. Isso nos adverte quanto a idealização a que estamos submetidos, atentando-nos para esta armadilha a que se refere o Ideal. Se tentarmos atingí-lo poderemos ser capturados e na captura não há escuta possível. Leo explicita isso: só ele pode dizer-se.

. Neste trabalho, fio da navalha, não há garantias. Não há como determinar um final ou um único caminho. Cabe-nos andar assim, no fio da navalha, operando entre o que é da ordem do sujeito e o que é da ordem do contexto das instituições, sem ceder diante da tensão que se coloca, mas também sem responder ao Ideal.

. Leo continua fazendo seus caminhos. Nele reconhecemos alguns trilhos. Diante daqueles não nos cabe desistir, entretanto, ao percorrer as trilhas identificamos nossas limitações, porque somos barrados, e se queremos continuar autorizados por Leo a caminhar lado a lado, ajudando-o a inscrever seu modo particular, temos que nos assumir como faltantes, submetidos à barra da linguagem, caminhando no fio da navalha.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, Renata. (2005) Texto apresentado no Encontro Internacional de Psicopatologia, 2004. Publicado na Revista Mental, Barbacena- junho de, p.45 a 58

CLAVREUL, Jean. (1983) A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Edição Brasiliense, São Paulo:. 274 p.

GARCIA, Célio. (2000)  Clínica do Social. Belo Horizonte: Editora Projeto, p. 25.

GARCIA, Célio. (2002) Rede de Redes In: Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental – Interfaces. Belo Horizonte: Oficina de Arte e Prosa,.

GARCIA,Célio. A referência em Freud para o termo “Construção”. (Inédito).

LACAN, Jacques. (1988) Seminário 3 as psicoses. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro

VIGANÓ, Carlo. (1999) A Construção do caso clínico em Saúde Mental. In: Curinga – Psicanálise e Saúde Mental. EBP – MG, Belo Horizonte:, n.13, p50-59.

VIGANÒ, Carlo. O trabalho na rede. In: Conferências de Carlo Viganò: Inédito.

ZENONI, Alfredo. (2000) Psicanálise e Instituição. A Segunda Clínica de Lacan. Belo Horizonte: Abrecampos, revista  de Saúde Mental do Instituto Raul Soares – Ano 1 – Nº 0 
 

(1) Hospital Dia é um dispositivo para o tratamento de pacientes portadores de sofrimento mental em regime de permanência dia. A equipe deste serviço é composta por médicos psiquiatras, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, psicólogos e terapeutas ocupacionais.

(2) Seção de atendimento ao adolescente em situação especial.

(3) ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição. A Segunda Clínica de Lacan. Belo Horizonte: Abrecampos, revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares – Ano 1 – Nº 0 – 2000.

(4) Termo utilizado pela psicanálise, como referência clínica realizada por profissionais de formações diversas, mas que levam em conta, como princípio ordenador, a relação do sujeito com Outro.

(5) VIGANÒ, Carlo. O trabalho na rede. In: Conferências de Carlo Viganò: Inédito.

(6) GARCIA, Célio. Rede de Redes In: Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental – Interfaces. Belo Horizonte: Oficina de Arte e Prosa, 2002.

(7) Ibdem, p.109

(8) ANDRADE, Renata. Texto apresentado no Encontro Internacional de Psicopatologia, 2004. Publicado na Revista Mental.

(9) A prática da médica é sustentada por um saber prévio, por um saber já constituído. Segundo Clavel, através das diversas etapas pelas quais se efetua o ato médico, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico e da terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar. Por intermédio da utilização de um vocabulário ao qual o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no discurso médico. Operação que visa portanto, o estabelecimento da identidade em detrimento da alteridade: o mesmo em detrimento do outro. A pluralidade de sentido, característica da língua, é abolida para dar lugar à univocidade de sentido, ideal do código. Desse modo, o discurso médico se apropria do discurso do sujeito, transformando os significantes de sua fala em signos, em sinais médicos. A fala do sujeito é ouvida apenas para ser descartada imediatamente., onde se depreende a função silenciadora do discurso médico. (CLAVEL: 1996: 18/19)

(10) “Caso vem do latim cadare, cair para baixo, ir para fora da de uma regulação simbólica; encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto impossível de ser suportado”. A Construção do Caso Clínico em Saúde Mental. “A palavra clínica vem do grego Kline e quer dizer leito. A clínica é ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito.” A Construção do Caso Clínico em Saúde Mental. (VIGANÒ:1999:52)

(11) GARCIA, Célio. Clínica do Social. Belo Horizonte: Editora Projeto, 2000 p. 25.

(12) GARCIA,Célio. A referência em Freud para o termo “Construção”. (Inédito).

 
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